Decidi ser aquele meu último carnaval em Olinda. Enxergava o maracatu, as sombrinhas coloridas dos passistas, o Homem e a Mulher da Meia Noite. Sorvia lentamente um capeta de sirigüela – passava se arrastando apertado pelas amídalas, senti o gelado tombar no meu estômago vazio.

Sentei na calçada dos Quatro Cantos. Observava. As fantasias mais coloridas, o calor sufocando, o sol queimando minhas íris verdes. Um trem de pessoas entoava uma marchinha antiga. Parecia ver carnavais de outras épocas, nos chapéus com plumas da porta bandeira, o vestido armado se encontrando com os sapatos cobertos de glíter prateado; na cabeça, peruca barroca.

Acompanhava os casais de namorados em cada pequeno gesto, um beijo na nuca suada da mocinha, abraços apertados de um vilão em frente ao muro pichado de grafite. Crianças molhando umas às outras. O sol quebrava-se em prismas de cor nos jatos de água, repousando numa cabecinha marrom.

Os cachos desciam e subiam a ladeira dos ombros, ao som de Vassourinhas encolhiam-se, expandiam-se acompanhando a minha respiração ofegante: não teria cinco anos a menina. Usava uma fantasia de papel machê, mal lhe cobria o corpo roliço, macio. As sapatilhas azuis, quase cinzas, mostravam a trilha dos muitos passos dados naquela manhã de Sábado de Zé Pereira.

Não havia mãos dadas com alguém. Me acompanhava na despedida de quem éramos, cúmplices no desejo de um mesmo personagem. Se ela Colombina, eu um Pierrot disfarçado; se eu uma Julieta velha, ela um Romeu travestido. Não nos importávamos com os olhos alheios, eu tantas vezes antes não me importara, levando crianças de igual idade ao meu atelier, dando-lhes bombons coloridos e viciados, jogando cartas até surtirem efeito, despindo-os em canções de ninar. Somente então tomava-lhes o corpo miúdo emprestado, saindo minha alma deste cansado e doente, contaminando-as em carne e espírito, esperando absolvição no próximo carnaval.

Adorava esculpir na madeira depois de enterrá-los. No jardim, as estátuas marcavam o lugar dos caixõezinhos e lhes davam apelidos: Bolinha de Gude, Pipa, Boneca de Pano, Caminhãozinho. Uma vez tive muito trabalho com dois negrinhos irmãos, chuparam mais pirulitos que o necessário, entrei em êxtase muito antes dos pares de olhos esbugalharem, das minhas mãos longas cravejarem a espátula nas costas cor de jambo.

Plantei-os debaixo do pé de jabuticaba e no verão seguinte os frutos eram mais escuros e doces, tendo eu que aproveitá-los em compotas e geléias frescas. Vendi toda a produção no Mosteiro de São Bento. Ri imaginando os monges degustarem com torradas os negrinhos que antes eu havia me deliciado.

Acariciei os caracóis da menina sozinha, perguntei-lhe o nome.

Eugênia.

Numa suavidade saíam dos lábios as sílabas, minha cabeça girava querendo voltar ao passado e desistir do futuro.

Só mais uma vez.

Puxei a pulseira de Maomé e rezava na direção de Meca pedindo socorro para a tentação. Rezava as frases lentamente, com vigor e fé, mas não pedira àquelas mãozinhas gorduchas para desenhar minhas sobrancelhas, descer por meu nariz torto, descansando sobre os meus lábios.

Havia de ser a última chance.

Subimos a Ladeira da Misericórdia. Ela cantava o Hino do Elefante com a língua enrolada da idade, mais tarde se enrolaria nela mesma, eu começava a sentir o antigo formigamento nos dedos do pé esquerdo, as pernas, tronco e braços; quando encontrassem as unhas da mão seria tarde, o sol posto, o Mar Vermelho e o Rio Nilo descendo a ladeira, nos juntando ao Capibaribe e ao Beberibe formando o Oceano Atlântico.