Uma força da natureza |
Ela
era trigueira, pequena e notável, talvez na iminência de se confundir
com alguma força da natureza. Talvez seja uma grande injustiça compará-la
com tal situação, mas desde que leve a sério as intuições de minhas
indiossincrasias, e muitas vezes elas são incomunicáveis aos demais, ela
talvez sugerisse La Guèrre, de Henry
Rousseau. Comprometida com certos receios, quem sabe atávicos, pois
todos nós os temos, depositara-se no mundo a serviço das
responsabilidades que lhe chegassem, tanto que se revelou mãe, e isso
tomou-lhe todo o tempo da própria vida, fazendo com que até esquecesse
de si mesma. Se
havia alguma coisa que lhe pudesse ser censurada, em relação ao que se
transformou em razão da própria existência, era o excesso de zelo,
quase histérico, que ela derramava sobre a prole. E aí, em muitas ocasiões,
ela se reduzia a uma loba aflita, desafiando a tudo e a todos, tentando
sem êxito interferir em destinos que não lhe diziam respeito, defendendo
com unhas e dentes o que dela saíra, mas que não lhe pertencia. Ela
estava sempre se esquecendo desses detalhes. Mas
ela não podia ser acusada de egoísta, como muitas mães que têm
circulado pela vida. Ensaiava, aos poucos, o amor universal. Sem medir
sacrifícios, seu amor estava a serviço do mundo, desde que ele batesse a
sua porta. Às
vezes penso que ela poderia ter ido muito além daquilo que se permitiu.
Talvez tenha lhe faltado ambição. Talvez não tenha notado que há
sempre mais signos além daqueles que nos cercam e nos educam. Talvez eles,
esses signos que compõem o mundo, permitindo que ele seja classificado e
entregue às repartições arbitrárias, a tivessem intimidado,
transformando-se em pequenos traumas. Talvez esse suposto receio atávico
tenha se transtornado num medo do desconhecido, cegando-a a ponto de não
perceber o que essas outras coisas pudessem lhe oferecer, desde que
soubesse extrair prazer das experiências, pois, quem sabe, desde que ela
o permitisse, elas conseguiriam arrancá-la definitivamente de certo
engessamento, talvez protetor e confortável, mas não evolutivo, fazendo-a
alçar-se além da própria montanha. Talvez, se tivesse tropeçado num
homem mais forte do que ela, pois acabou se casando com uma criança, um
homem verdadeiro, que a violentasse para seu próprio bem, e esculpisse
seu mármore, ela tivesse aprimorado seu potencial. Mesmo
assim, ela, onde quer que estivesse, fazia o que podia, e sempre, de um
jeito ou de outro, acabava brilhando, fosse pelo sorriso, fosse pela
determinação, fosse pela velocidade, fosse pelo amor e pela ternura que
concentrava em seu íntimo. Enfim,
sufocada por esse receio tolo de dar um passo que lhe permitisse acesso ao
estranhamento, ela, além da evasão nos filhos, refugiava-se também num
passado familiar longínquo, consumido pelo anedotário peculiar às famílias
humildes de prole numerosa, mais interessante a seus próprios membros do
que aos estranhos, que ela insistia em transfigurá-lo pela nostalgia de
um paraíso perdido, sempre entregue à memória, fazendo do próprio
cotidiano, sem nenhum vínculo com a transcendência, uma fonte inesgotável
de assuntos, como se apenas o seu tivesse alguma importância, pois o seu
mundo seria sempre o mundo mais importante do mundo, e o que estivesse de
fora seria sempre visto como esquisito e ameaçador, por isso ela sempre
estava virando suas costas para o que escapasse da sua alçada, porque
tudo o que talvez fingisse desprezar talvez lhe revelasse que seu próprio
universo fora sempre pequeno, insignificante, quase mesquinho, e ela
talvez não estivesse preparada para encarar o fato - e tudo sempre
entregue à ladainha da repetição, com direito a um determinado prefácio,
sim, ela tinha um prefácio, ou coisa que o valesse, e ele se manifestava
quando sua ansiedade e sua ausência de auto-crítica alinhavavam-se para
que seu desejo irresistível de dizer alguma coisa se inflamasse, e o que
quer que estivesse acontecendo deveria ser suspenso para que ela
explodisse, pouco lhe dizendo respeito se o interlocutor estivesse ou não
interessado em ouvi-la, e nem sempre ele estava, ouvindo-a mais por
comiseração e cordialidade: “Só um pouquinho”... Mas
isso é necessário a ela, a mim, a cada um de nós, perfeitos órfãos da
tempestade, porque o sol apenas brilha para que assopre nossas feridas: a
própria coleção de signos, compatibilizada com cada natureza,
promovendo a questão do gosto, recolhidos pela memória faminta, compondo
certo patrimônio, nem sempre comunicável. E não é justo compará-los,
os signos de cada órfão da tempestade, porque toda comparação é
sempre arbitrária, inexistindo o melhor ou o pior grupo, havendo apenas a
experiência do signo íntimo, abrigado pela memória, permitindo consolo,
ilusões, refúgio e alívio temporários. Ela estava certa. Eu estava
certo. Cada um de nós estava no exercício das próprias razões. E é
assim que temos vivido, desde que começamos a perceber a necessidade da
História. Portanto,
é desumano reduzi-la a uma espécie de calamidade, só porque talvez não
lhe fosse possível apreciar a eloqüência do próprio silêncio, muito
menos, extrair prazer da própria solidão – por isso sempre inquieta,
turbulenta, efervescente, precisando falar pelos cotovelos com os que
estivessem a seu redor, impedindo-a de perceber que os que falavam muito,
pouco tinham a dizer: a introspecção dos escritores ainda não fazia
parte de seu rol de qualidades, e ela se sentiria ameaçada na presença
de talheres de peixe. Mas tudo sempre vem a seu tempo, desde que a alma não seja pequena, tenho certeza disso, e ela tinha meios de fazer da humildade uma das formas de apreensão do necessário das coisas. Mas era bem provável que ela não devesse abandonar a expansão limitada de si mesma, sempre reduzida a aspirações muito simples. Hoje, lembrando-me dela pela ternura e pelo amor, porque do seu jeito ela me ensinou a amar, tenho certeza de que sempre estivera no lugar certo. O que eu gostaria que lhe acontecesse talvez só viesse a lhe fazer muito mal. Certas naturezas nunca podem ser vencidas pela novidade que as transplante e as aperfeiçoe. Por isso se deve sempre ter muito cuidado com certas flores exuberantes - elas correm o risco de murcharem ao serem retiradas de seu local de origem. |
Augusto Mariante
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