Amigos protectores de Letras-Uruguay

Uma força da natureza
Augusto Mariante

Ela era trigueira, pequena e notável, talvez na iminência de se confundir com alguma força da natureza. Talvez seja uma grande injustiça compará-la com tal situação, mas desde que leve a sério as intuições de minhas indiossincrasias, e muitas vezes elas são incomunicáveis aos demais, ela talvez sugerisse La Guèrre, de Henry Rousseau. Comprometida com certos receios, quem sabe atávicos, pois todos nós os temos, depositara-se no mundo a serviço das responsabilidades que lhe chegassem, tanto que se revelou mãe, e isso tomou-lhe todo o tempo da própria vida, fazendo com que até esquecesse de si mesma.

Se havia alguma coisa que lhe pudesse ser censurada, em relação ao que se transformou em razão da própria existência, era o excesso de zelo, quase histérico, que ela derramava sobre a prole. E aí, em muitas ocasiões, ela se reduzia a uma loba aflita, desafiando a tudo e a todos, tentando sem êxito interferir em destinos que não lhe diziam respeito, defendendo com unhas e dentes o que dela saíra, mas que não lhe pertencia. Ela estava sempre se esquecendo desses detalhes.

Mas ela não podia ser acusada de egoísta, como muitas mães que têm circulado pela vida. Ensaiava, aos poucos, o amor universal. Sem medir sacrifícios, seu amor estava a serviço do mundo, desde que ele batesse a sua porta.

Às vezes penso que ela poderia ter ido muito além daquilo que se permitiu. Talvez tenha lhe faltado ambição. Talvez não tenha notado que há sempre mais signos além daqueles que nos cercam e nos educam. Talvez eles, esses signos que compõem o mundo, permitindo que ele seja classificado e entregue às repartições arbitrárias, a tivessem intimidado, transformando-se em pequenos traumas. Talvez esse suposto receio atávico tenha se transtornado num medo do desconhecido, cegando-a a ponto de não perceber o que essas outras coisas pudessem lhe oferecer, desde que soubesse extrair prazer das experiências, pois, quem sabe, desde que ela o permitisse, elas conseguiriam arrancá-la definitivamente de certo engessamento, talvez protetor e confortável, mas não evolutivo, fazendo-a alçar-se além da própria montanha. Talvez, se tivesse tropeçado num homem mais forte do que ela, pois acabou se casando com uma criança, um homem verdadeiro, que a violentasse para seu próprio bem, e esculpisse seu mármore, ela tivesse aprimorado seu potencial.

Mesmo assim, ela, onde quer que estivesse, fazia o que podia, e sempre, de um jeito ou de outro, acabava brilhando, fosse pelo sorriso, fosse pela determinação, fosse pela velocidade, fosse pelo amor e pela ternura que concentrava em seu íntimo.

Enfim, sufocada por esse receio tolo de dar um passo que lhe permitisse acesso ao estranhamento, ela, além da evasão nos filhos, refugiava-se também num passado familiar longínquo, consumido pelo anedotário peculiar às famílias humildes de prole numerosa, mais interessante a seus próprios membros do que aos estranhos, que ela insistia em transfigurá-lo pela nostalgia de um paraíso perdido, sempre entregue à memória, fazendo do próprio cotidiano, sem nenhum vínculo com a transcendência, uma fonte inesgotável de assuntos, como se apenas o seu tivesse alguma importância, pois o seu mundo seria sempre o mundo mais importante do mundo, e o que estivesse de fora seria sempre visto como esquisito e ameaçador, por isso ela sempre estava virando suas costas para o que escapasse da sua alçada, porque tudo o que talvez fingisse desprezar talvez lhe revelasse que seu próprio universo fora sempre pequeno, insignificante, quase mesquinho, e ela talvez não estivesse preparada para encarar o fato - e tudo sempre entregue à ladainha da repetição, com direito a um determinado prefácio, sim, ela tinha um prefácio, ou coisa que o valesse, e ele se manifestava quando sua ansiedade e sua ausência de auto-crítica alinhavavam-se para que seu desejo irresistível de dizer alguma coisa se inflamasse, e o que quer que estivesse acontecendo deveria ser suspenso para que ela explodisse, pouco lhe dizendo respeito se o interlocutor estivesse ou não interessado em ouvi-la, e nem sempre ele estava, ouvindo-a mais por comiseração e cordialidade: “Só um pouquinho”...

Mas isso é necessário a ela, a mim, a cada um de nós, perfeitos órfãos da tempestade, porque o sol apenas brilha para que assopre nossas feridas: a própria coleção de signos, compatibilizada com cada natureza, promovendo a questão do gosto, recolhidos pela memória faminta, compondo certo patrimônio, nem sempre comunicável. E não é justo compará-los, os signos de cada órfão da tempestade, porque toda comparação é sempre arbitrária, inexistindo o melhor ou o pior grupo, havendo apenas a experiência do signo íntimo, abrigado pela memória, permitindo consolo, ilusões, refúgio e alívio temporários. Ela estava certa. Eu estava certo. Cada um de nós estava no exercício das próprias razões. E é assim que temos vivido, desde que começamos a perceber a necessidade da História.

Portanto, é desumano reduzi-la a uma espécie de calamidade, só porque talvez não lhe fosse possível apreciar a eloqüência do próprio silêncio, muito menos, extrair prazer da própria solidão – por isso sempre inquieta, turbulenta, efervescente, precisando falar pelos cotovelos com os que estivessem a seu redor, impedindo-a de perceber que os que falavam muito, pouco tinham a dizer: a introspecção dos escritores ainda não fazia parte de seu rol de qualidades, e ela se sentiria ameaçada na presença de talheres de peixe.

Mas tudo sempre vem a seu tempo, desde que a alma não seja pequena, tenho certeza disso, e ela tinha meios de fazer da humildade uma das formas de apreensão do necessário das coisas. Mas era bem provável que ela não devesse abandonar a expansão limitada de si mesma, sempre reduzida a aspirações muito simples. Hoje, lembrando-me dela pela ternura e pelo amor, porque do seu jeito ela me ensinou a amar, tenho certeza de que sempre estivera no lugar certo. O que eu gostaria que lhe acontecesse talvez só viesse a lhe fazer muito mal. Certas naturezas nunca podem ser vencidas pela novidade que as transplante e as aperfeiçoe. Por isso se deve sempre ter muito cuidado com certas flores exuberantes - elas correm o risco de murcharem ao serem retiradas de seu local de origem.

Augusto Mariante 

mariantefurtado@hotmail.com

Ir a índice de América

Ir a índice de Mariante, Augusto

Ir a página inicio

Ir a mapa del sitio