Um instante sublime
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“Minhas
medidas não se tornarão enfraquecidas por eventuais inconvenientes jurídicos
ou por alguma burocracia. Não tenho que praticar justiça, mas sim
aniquilar e exterminar”
Hermann
Göring - 1933
1
Subitamente,
ele foi interrompido por um pequeno raio de lembrança. Ele desabou,
explodiu e incendiou sua mente, fazendo-o mastigar o café da manhã com
um entusiasmo que parecia tê-lo abandonado para sempre. O entusiasmo da
febre da juventude - ele sempre chapinha na ignorância acerca das coisas
que realmente formam o mundo; tem a imprudência dos que se apaixonam por
uma rosa, não percebendo que para apanhá-la correm o risco de muitos
espinhos.
Sem
nenhum esforço, nas condições em que se encontrava, aquela inesperada
intromissão parecia ter o poder de conseguir expressá-lo. Mas, ao mesmo
tempo, também parecia ter entrado em cena mais para reforçar seu infortúnio
do que para trazer-lhe alguma alegria, deixando bem claro que não havia
mais esperança, dobrando seus joelhos para que se resignasse à própria
impotência.
Tudo
talvez se conformasse a uma espécie de consolo apoiado na
analogia. Conseguia ver no outro o que acontecia com ele. Tudo
acabava reduzido a variações em torno do mesmo tema. Sem que ninguém
movesse um dedo, a
História
se
repetia, acomodando suas repetições às circunstâncias de tempo e
lugar.
Aquilo
seria um descalabro para muitos, principalmente, para os que costumavam
tapar o sol com peneira, tentando, em seu desespero, esconder-se como um débil
avestruz. Oferecia vantagens duvidosas. Não ia muito além duma lucidez
sinistra. Dependendo da resistência do freguês, teria meios implacáveis
para deixá-lo ainda mais desiludido e deprimido do que já se encontrava.
Era uma provocação a um colapso nervoso. Era um convite à próxima
janela ou a um tiro na cabeça.
Mas
para ele emergia como uma espécie peculiar de
Graça
Divina.
Dizia-lhe silenciosamente que, apesar de condenado, ainda
estava vivo e fazendo o que sempre fizera, desde que descobrira suas tendências
e caminho. Morreria pensando, mesmo que faltasse papel e lápis.
Provavelmente, até na hora em que fosse recolhido, como todos estavam
sendo, estivesse na companhia daquele agente provocador intermitente. Ele
sempre o predispunha a descobrir alguma coisa nova, fazendo com que se
deliciasse com as conclusões achadas, mesmo que não pudesse dividi-las
com quem quer que fosse.
Relato
nº01
Gerhard
Schoenberner
2
“O anti-semitismo, assim como o anticomunismo, foi um elemento fundamental no programa de Hitler. Anti-semitismo foi o nome dado à fórmula mágica com a qual ele interpretou todos os males sociais e conquistou as massas desorientadas politicamente. Foi através do anti-semitismo que ele desfez o Parlamento, instituiu a ditadura e envolveu o povo alemão em seu crime”
Ele
não conseguia perceber a tela em sua totalidade estupefaciente.
Fragmentos dela insinuavam-se pela memória como as ruínas duma vila
secular, encontradas ao acaso, durante um passeio pelo campo. As cores
também desfilavam incertas pelo embaralhado que, aos poucos, ia tomando
viço e forma, recompondo-se como um quebra-cabeça desfalcado. O nome do
pintor também lhe escapava.
Onde
vira aquilo? Eram tantos museus naquela época. Tantas paredes. Tantos
quadros fixos nas paredes dum número excessivo de museus. Talvez fosse o
Louvre.
Com certeza fora no
Louvre.
Foi onde vira as cenas mais interessantes. E, muitas vezes, elas
pertenciam a pintores desconhecidos – infelizes talentosos sem a sorte
da posteridade. Nunca esteve interessado em pintura, mas nas cenas que
muitas concentravam, contando alguma coisa. No
Louvre,
gastara muita energia e solas de sapato, palmilhando quilômetros num vai
e vem assistemático, sempre coordenado pelo deslumbramento e pela
curiosidade. Mal tinha quinze anos.
E
aquele quadro causara-lhe forte impressão, tanto que jamais o havia
esquecido, a ponto dele voltar a atormentá-lo, contaminando sua mente,
sem pedir permissão ou mandar aviso, passando a latejar em seu imaginário,
trazendo-lhe certo alívio, encaixando-se como uma luva em sua vida, por
aqueles dias de incerteza e nervosismo sem trégua. Dias nas pontas dos pés.
Mas
ele tinha certeza de que o importante era que captava sem censura um
instante febril de
Saint-Lazare
.
A tela fora deixada ao mundo com a incumbência de registrar uma mônada
do
Terror
. Era histórica,
jornalística, sem abandonar sua condição de obra-prima.
Relato
nº 02
“As
leis racistas de Nuremberg e seus 20 decretos posteriores arruinaram
milhares de famílias e levaram inúmeros inocentes a julgamento. Uma família
judaica que empregasse uma doméstica cristã poderia ser condenada por
profanação de raça, da mesma forma que um ‘ariano’ que se casasse
no exterior com uma mulher judia depois da promulgação das leis. Não se
tem o número exato de condenações da justiça alemã proferidas com
bases nas Leis de Nuremberg. Der Stürmer estima 558 condenações somente
no ano de 1936. Após o cumprimento de diversos anos de reclusão
penitenciária, sucedia, automaticamente, a transferência para um campo
de concentração.”
Gerhard
Schoenberner
3 O que nunca fora apagado de sua cabeça era o escritor recostado no canto direito da parte inferior da tela, numa atitude de absoluto abandono e alheamento à aflição e ao desespero que o circundava. Ele fazia parte daquelas horas contadas. Também não seria poupado. Era tudo uma questão de comboio, espaço na próxima carroça. Mas ele agia como se estivesse na tranqüilidade dum gabinete. Aquilo talvez fosse uma forma meio desastrada de ter esperança, espantar o medo, procurando um jeito de distrair-se até que chegasse o momento inapelável. Ele não tinha muita certeza, mas talvez houvesse um facho de luz num amarelo pardacento tripartindo-se, triangularizando três possibilidades de estados de espírito, três pontos de vista, fazendo daquele quadro um instantâneo febril a respeito da incerteza de nossa posição no mundo das formas. Ele iluminava um oficial da Revolução que talvez atuasse como meirinho trazendo as condenações da hora. Ele permitia que o escritor roubasse a cena pondo-o em primeiro plano, mesmo que estivesse jogado num canto. Mas também não poupava uma mulher ebúrnea, vestida de branco, no alto dos degraus duma escada cor de lama. Se o poeta tentava escrever em seus últimos instantes, ela se apavorava com o que ouvia, contorcia o corpo, quase desfalecendo, recusando-se a deixar o lugar, mesmo que estivesse sendo empurrada na direção de sua sorte, enquanto que o suposto meirinho cumpria seu dever – o que poderia significar amor à causa, legítima defesa em relação à própria pele ou vingança de um passado consumido por humilhações.
Relato
nº03 “Quando Treblinka fica superlotada, abandonam-se os vagões lacrados durante dias sobre os trilhos, até que todos os ocupantes morram sufocados” Gerhard Schoenberner
4
Naquela
manhã cinzenta e fria, quem sabe prometendo chuva, fumando seu primeiro
cigarro após o café da manhã, sem saber se almoçaria na própria casa,
nada o impedia de sentir-se como um
André
Chénier
atirado na postura dum saco de batatas num canto de
Saint-Lazare,
tentando extrair versos das circunstâncias.
E,
pelo que conseguia lembrar, ele estava tenso como uma corda dum
Stradivarius.
Mas tenso por motivos mais elevados do que simplesmente debater-se
como um peixe agônico, recém tirado duma rede, mendigando por mais
alguns minutos de permanência neste mundo sempre hostil. A perturbação
de seu rosto não enganava. Deixava evidente que eram motivos mais íntimos,
dotados duma integridade que talvez se confundisse com egoísmo para
alguns. Mas, acima de tudo, eram motivos ensangüentados na própria
vontade de impor-se ao mundo mais pelo que ele fazia do que pelo que
provavelmente fosse. Egoístas, talvez, mas eles transbordavam
idiossincrasias pelos póros, deixando bem claro a quem visse o quadro que
estava na presença de alguém que sabia o que desejava da vida, estando
disposto a pagar o preço que lhe fosse cobrado.
Incomunicável
em sua bolha de evasão, indiferente ao burburinho de gente aflita que se
espremia e se debatia, em meio à sujeira e à promiscuidade, sob pouca
luz e nenhuma esperança, ele conseguia reduzir o apelo mendicante pela
vida a um gesto insano e vulgar. Espiritualizava-se.
Talvez,
em seus ouvidos, ainda ecoasse uma
DuBarry
protestando contra seu veredicto, deixando bem claro que ainda era
muito cedo, fazendo das tripas coração para procrastinar o momento fatídico.
Em desespero de causa, a amante de
Luís
XV
, sua última favorita, deixou juízes e jurados atônitos com sua
verborragia desesperada, literalmente, meretrizando a corte com a
inconveniência de seu apelo pela vida. Agressiva e indignada, ela fugia
à regra, resistindo a uma sentença desfavorável, sem a resignação
habitual dos que passavam cabisbaixos por ali diariamente. O poeta talvez
ainda lembrasse que ela, da Conciergerie à praça da Revolução,
conseguiu transformar as ruas de Paris num grande fiasco, assustando a
todos com seus lamentos e uivos, além do fato de contorcer-se e debater-se,
sem descanso, como se estivesse subjugada por estertores mediúnicos,
desafiando a escolta, a ponto dos carrascos encontrarem muita dificuldade
em contê-la, fosse na carroça, fosse já no cadafalso. A
DuBarry
berrava pela vida, berrava que era inocente, berrava que podia comprar
a própria liberdade, berrava que sempre pertencera ao povo. Com seu
estardalhaço mendicante, ela conseguiu até espantar a ralé, coisa meio
difícil num dia de espetáculo, que assustada, manteve-se silenciosa, sem
ânimo para proferir ofensas ou blasfêmias, retirando-se respeitosamente
em seu instante definitivo. Seu desespero era tamanho que ela teve
prioridade na hora da execução, como um doente em estado grave numa
emergência de hospital. Provavelmente, a única forma encontrada para
acabar com aquela ladainha sinistra que punha todos sobressaltados e
entregues a um desconforto intraduzível. Enfim, a
DuBarry
só sossegou o pito e calou a boca quando o cutelo desceu, deixando pelo
cesto a imagem tenebrosa dum rosto tenso, marcado pelo pavor e pelo
ressentimento. Ele não conseguia recordar muito bem, mas, apesar do desespero ao redor do poeta insano, em alguns poucos ainda havia gesto e silêncio significativos, impregnados de discrição, deixando escapar sutis sinais apreensivos. Se não lhe falhava a memória, havia um par de supostos aristocratas, não muito bem iluminados, que, em pé, escutavam as novas que lhes chegavam, agindo com certo desdém à ordem que desabava sobre suas cabeças ainda empoadas.
Relato
nº04
“Certa
vez, quando eu caminhava ao longo do muro, me meti numa ação das crianças
contrabandeando. Aparentemente, a ‘ação’ propriamente já tinha
terminado. Restava algo a fazer. O menininho judeu, do outro lado do muro,
teria que passar por um buraco trazendo o último saque. O corpinho já
estava visível quando ele começou a gritar. Simultaneamente, vinham do
lado ‘ariano’ xingamentos altos em alemão. Corri em auxílio à criança
e quis puxá-la rapidamente através da fenda. Desgraçadamente, o quadril
do menino ficou agarrado à abertura. Com as mãos e toda força, tentei
puxá-lo para dentro. Ele continuou gritando terrivelmente. Do lado de lá
do muro ouviam-se as violentas pancadas dos policiais. Quando finalmente
consegui puxá-lo pela fenda, estava agonizando. Sua espinha dorsal estava
esmagada.” W. Szpilman
5
Pelo
que ia conseguindo reconstituir, o oficial da
Revolução
encontrava-se de pé, exuberante no corpo e na função
que ocupava, com inúmeras folhas de papel. Ele lia das listas, que
segurava com as duas mãos, os nomes dos escolhidos que iam saltar direto
da prisão para o cadafalso, sem a perda de tempo dum julgamento, para que
Saint-Lazare
se
esvaziasse, pois, com toda certeza, em poucas horas, estaria transbordante
novamente, até que todos os inimigos da causa estivessem dizimados. Enquanto isso, a ralé se espremia, gesticulava e vociferava, como se o mundo lhe pertencesse, quase satisfeita, exigindo mais sangue, vendo aquela gente presa como aves gordas se debatendo numa gaiola de cozinha, prometendo o jantar daquela noite ou almoço do dia seguinte.
Os
julgamentos excessivamente sumários assumiam-se como satisfações a suas
imprecações e blasfêmias imperiosas. Quem sabe, matutava ele,
recorrendo a um segundo cigarro, se as execuções não estivessem tão rápidas,
a mulher pálida, vestida de branco, encontraria tempo suficiente para que
suportasse o mesmo destino da
Princesa
de Lamballe
, que fora, algum tempo antes, simplesmente reduzida pela
população a pedaços sangüinolentos, oferecendo às ruas uma procissão
delirante e devastadora...
Ele
via aquele passado como uma época de irrupções intermitentes de
assassinatos cruéis e sádicos. Eles chegavam a se confundir com espetáculos
bacantes. Deixavam sempre um rol exaustivo de personagens imolados em nome
do prazer pela destruição. Embora houvesse a camuflagem duma
Revolução
, e nelas, ele sabia muito bem, seria sempre impossível
conter o excesso de violência e o derramamento de sangue, enquanto a
temperatura ainda estivesse muito alta.
Hoje,
entretanto, e isso muito o assustava, as coisas corriam em linha de
montagem. Era como se a energia destrutiva se encontrasse sob controle.
Era como se tivessem visto em
Adam
Smith
um grande achado. E ela, aquela energia insalubre, só era
ativada quando se fizesse preciso. O que não deixava de ser uma espécie
muito peculiar de evolução. Sofisticavam-se os meios devastadores, mas a
barbárie, embora objetivada, mantinha-se incólume, sem sofrer nenhum
arranhão em sua essência, sempre a postos, a serviço do mal que nunca
descansava – sua grande fornalha sempre encontrava alguém que a
alimentasse. Não era agradável deixar-se convencer que o mal predominava
no mundo.
Relato
nº05
“Na retaguarda do Exército, foram liquidados 10.000 judeus sem a minha deliberação, embora tal eliminação sistemática tenha sido projetada por nós. Na cidade de Minsk foram liquidados 10.000 judeus, nos dias 28 e 29 de julho. Dentre eles, 6.500 judeus russos – a maioria velhos, mulheres e crianças; o restante eram judeus incapacitados ao trabalho, que foram mandados para Minsk por ordem do Führer. Vieram de Viena, Brünn, Bremen e Berlim, em novembro do ano passado.”
Wilhelm
Kube - Generalkommissar
6
Alguns
anos depois, ficaria sabendo que o escritor era
André Chénier,
morto em 1794, sob o tacão de
Robespierre
, apesar dele, ironicamente, quarenta e oito horas após
sua decapitação, ter sucumbido à mesma sorte, com a agravante de
entregar sua cabeça já com um maxilar quebrado. Nunca se dera ao
trabalho de ler seus versos - nunca gostara de poesia, embora devorasse
romances. Mas nada o impediu de deixar-se apanhar pela atitude do sujeito
momentos antes de subir o cadafalso.
E
assim, com papel e lápis sobre a coxa esquerda, mal ouvindo a voz cidadã,
arrolando mais trabalho para
Mlle.
Guillotine
, recostado num banco rústico, de costas para a realidade
febril que o impelia para a morte, insensível aos ratos e ao cheiro de
excrementos, num cantinho da tela, mas de frente para o público que
observaria sua atitude escapista ou sua forma peculiar de liberdade,
André
pensava a possibilidade de mais versos.
Com
seu ar insano, ele se torturava pelo incomunicável do
mot juste
- uma pedra idiossincrática, específica, insubstituível,
que deveria se incrustar na frase, oferecendo o efeito desejado. Mas ele
também deveria saber que, geralmente, a defasagem, que existe entre o que
um escritor imagina e aquilo que ele consegue escrever, sempre pisoteia no
resultado, insatisfazendo o artífice. Se muitos se agarravam à Virgem,
ele punha sua vida nas mãos das Musas. Se não fosse neste comboio, iria
no próximo. O certo era que o nome estava na lista. O único receio da
carne que talvez ainda lhe restasse era que a lâmina, que tanto
trabalhava, não mais estivesse afiada quando descesse sobre seu pescoço.
Nem sempre ela dava conta do recado, tamanha a demanda que lhe consumia o
fio, sabotando aquilo que deveria ser rápido e indolor, permitindo que se
transformasse num suplício, pois a execução transformava-se num jogo de
tentativas. Agora vai! Não, ainda não! Mais uma vez! Agora! Mais uma
vez! Mais uma! Agora! Ainda não! Ufa! Até que enfim! A próxima!
Mergulhado
em si mesmo,
Chénier
também não
percebia que estava na mira dum s
ans-culotte
mal-encarado, às voltas com seu cachimbo. Ele conseguia lembrar-se
que o dedão de seu pé direito muito se assemelhava à cabeça duma naja.
Ele ostentava uma unha suja e encascurrada, provavelmente povoada por
fungos. Talvez fosse um dedão que apontasse porque acusava sua indignação
de nunca ter sido lembrado pela vida durante séculos, portanto, um dedão
revoltado que se fizera
jacobino
mais por vingança do que por justiça. Ele e seu dono pareciam loucos
para mastigar
Chénier
, talvez irritados com seu silêncio eloqüente.
E
ele, em sua inocência de quinze anos, ávido e curioso, pois Paris
realmente fora sua festa, subindo e descendo escadarias que talvez também
tivessem sido trilhadas por
Catarina
de Médicis
,
Ana da Áustria
,
Luís XIV
, até mesmo, pelo
Cardeal
de Richelieu
, nunca poderia imaginar que talvez estivesse na presença
do próprio futuro, quando descobriu aquele quadro no meio de tantos
outros. Ele se vira sem que soubesse que estava se vendo. Mas nunca era
tarde para que descobrisse coisas importantes. O vaticínio chegara com
certo atraso, mas a intuição se encarregara de entregar a carta enquanto
ainda havia tempo.
Relato
nº06
“Contornei
o monte de terra e permaneci frente à imensa cova. As pessoas estavam tão
prensadas umas às outras que só suas cabeças eram visíveis. De quase
todas as cabeças escorria sangue sobre os ombros. Alguns fuzilados ainda
se moviam. Alguns deles levantavam os braços e viravam a cabeça para
mostrar que ainda estavam vivos. Três quartos da vala estavam preenchidos.
Pelos meus cálculos, ali já continha perto de 1000 pessoas.”
Hermann
Friedrich Gräbe – um engenheiro de construção
7 Enquanto arrumava suas malas, pensava que aquilo que atravessara seus pensamentos lhe parecia óbvio, excessivamente banal, pois o mundo sempre estivera comprometido com analogias e repetições. E dúvidas mais práticas também corroíam-lhe as idéias. Embora alguns tivessem deixado vazar que não perdesse tempo com aquilo. Parecia que não passava de teatro. Todos eram sempre apartados de seus pertences, mal chegavam a seu destino. Recebiam uniformes. As cabeças eram raspadas. Perdiam-se na burocracia dum número. Um volume no máximo. Roupas quentes. Entretanto, algumas horas depois, quando a mala já estava pronta, e ele recorreu a um terceiro cigarro e a mais uma xícara de café, sua analogia assumira a forma orgulhosa duma descoberta, apesar dele saber muito bem que não havia mais espaço para aquela espécie de veleidade.
Mesmo
assim, esparramando-se pelo sofá de couro, ele persistiu. Agarrou-se ao
inesperado. Ficou durante longas horas numa espécie de dissecação do
achado, chegando à conclusão de que servia realmente
para alguma
coisa. Mesmo que já não servisse para mais nada.
Perscrutando
suas mãos delicadas, que ele tinha certeza de que talvez lhe trouxessem
muitos problemas, ele conjeturava que, se pensasse pela carne, estaria
apavorado, perplexo, constrangido à imobilidade. Pensar pela carne era
sempre pensar pelo medo. Principalmente, pelo medo da dor física. O medo
conduzia sempre ao pânico. Restavam sempre estátuas de sal.
Talvez
tivesse sangue de barata. Fosse o que fosse. Mas encontrara forças para
fugir do inevitável fazendo o que sempre havia feito. Pensar. Ler. Pôr
no papel o que extraía dos pensamentos. Apesar de sentir-se fraco, porque
vinha comendo muito mal.
Entretanto,
ainda conseguia saltar da cama todas as manhãs, lavar-se, vestir-se,
ficar em dúvida quanto à gravata, salpicar algumas gotas de sua água de
colônia e caminhar na direção da sua mesa de trabalho, como se
estivesse perseguindo um grande projeto.
Era
como se estivesse na direção da universidade. Quando lhe era permitido
ir ao clube. Quando não lhe era negado ter seu nome no catálogo telefônico.
Quando podia publicar necrológicos no jornal. Quando não havia nenhum
inconveniente em manter uma empregada ariana. Quando estava livre para
casar com quem bem quisesse. Enfim, quando não lhe era vetado encontrar
seus alunos e perscrutar os telhados em terracota e muitos campanários
subjugados pela tela duma bruma cinzenta, sempre empilhados em sua
perspectiva irregular, enquanto falava e caminhava pela sala de aula.
Naquela
época, sentia que era capaz de fazer alguma coisa pelo próximo. Mesmo
que seu auxílio não fosse além da idéia. No fundo, não passava dum
indicador bibliográfico, com direito também a oferecer comentários
sobre os livros prescritos. Mas era o que sabia fazer. Aliás, apesar dos
percalços, ainda não havia
esquecido
o que sempre fizera.
Relato nº07“Após a primeira execução, a segunda chamada de judeus tinha que se deitar sobre os corpos mortos, de tal maneira que as cabeças ficassem em cima dos pés dos cadáveres. Em cada vala eram jogadas umas 5 a 6 camadas de judeus. Chegava a 400 ou 500 o número de pessoas em cada uma. As execuções foram realizadas ao bel-prazer com armas de disparo rápido, carabinas e pistolas automáticas. Antes, muitos foram espancados até a morte. Era assombroso como os judeus entravam nas valas, apenas com consolações recíprocas para se encorajarem e facilitar o trabalho dos Comandos de Execuções.” Alfred Metzner
8
Ouvindo o carrilhão e observando uma ampulheta que se esvaía, ele reiterava a sensação dos minutos e das horas que sempre custavam a passar, embora décadas e séculos voassem, dando-lhe a certeza de que não haveria um Império de 1000 anos. E não precisava pensar muito a respeito. Bastava que alguém ouvisse a BBC e depositasse muita confiança no inverno russo – eles não tinham aprendido coisa alguma com Napoleão .
Apesar
do seu infortúnio, apesar deles estarem no comando, não deixava de ser
perversamente divertido observar aqueles energúmenos agindo da pior forma
possível, como se fossem eternos e imortais. Os miseráveis esqueciam que
todos sempre morriam no mundo, pouco importando se houve vitória ou
derrota, riqueza ou pobreza, prazer ou dor. E depois da morte, o corpo era
sempre transformado num exército de vermes famintos, cedendo seu espaço
ao pó, sendo, provavelmente, a maior prova desse movimento eterno, sempre
berrando silenciosamente que
tudo o
que é sólido se desmancha no ar.
Ele também se deixava congestionar momentaneamente pelo fato de que ninguém era inútil por inteiro, a ponto de não servir para coisa alguma. Ele sabia que o bem e o mal não apresentavam a pureza maniqueísta que tinha alimentado os contos de fadas e os folhetins. Quanto aos supostamente virtuosos, ele tinha certeza de que também apresentavam seus defeitos, uma vez que a virtude, sem flexibilidade e adequação contextual, gerava tanto fanatismo e intolerância quanto soberba, pois quem realmente era superior sabia compreender as fraquezas dos circundantes. Portanto, era bem provável que um péssimo caráter também fosse um homem de qualidades, embora, em muitos casos, fosse difícil garimpá-las. Assim pensava ele, quando ouviu o que sempre temera, convicto de que era imprescindível abandonar qualquer preocupação infundada com a pureza das coisas, porque somente o fato de alguém estar aturdido pela pureza era um grave sintoma de que não a possuía, estando, provavelmente, muito afastado da sua ilusória conquista. Entretanto, para seu alívio momentâneo, eram os vizinhos da frente, às voltas com a Lancia preta, sempre em alta velocidade, percorrendo as ruas como uma exigência poética de Marinetti . Era um automóvel, mas o alarme era falso.
Relato
nº08 “Cavar valas é o que demanda maior parte de tempo; a execução, em si, ocorre rapidamente (100 homens em 40 minutos...) A princípio, meus soldados não ficam impressionados. No segundo dia, porém, já se fez notável que somente um ou outro não ficava com os nervos aflorados ao realizar um extermínio de longo tempo. A impressão que tenho é que durante o extermínio não se dá nenhuma inibição psíquica. Isto, porém, ocorre no final do dia, quando reflete-se sobre isso em silêncio.”
Um
primeiro-tenente do exército chamado Walther
9
Cada
veículo que passava sob as janelas aumentava sua ansiedade. Sobressaltado
e indócil, naquela manhã, lá pelas tantas, viu-se contando retângulos
de vidro, parquês, livros, o que estivesse à disposição de seu
desconforto. A espera minava seu humor. O café enjoava seu estômago. Os
cigarros começavam a arranhar sua garganta. Não sabia exatamente o que
fazer com as horas que escoavam diante de sua impaciência. De repente,
sem transição ou titubeio, saltou do sofá para sua
Underwood
,
pondo-se a dedilhar pelo teclado, com a destreza duma secretária
padrão.
Relato
nº09
“Os judeus a serem evacuados devem ser orientados com relação à bagagem. Podem levar, no máximo, 25 quilos. Além disso, podem levar alimentos para o período de dois dias. As autoridades policiais locais têm que recolher a bagagem dos judeus no dia 28 de março de 1942, e guardá-la até a partida. Ela tem que ser pesada e vistoriada rigorosamente antes da partida; não pode conter armas (armas de tiro, explosivos, facas, tesouras, venenos, medicamentos etc.). A bagagem acima de 25 quilos dever ser reduzida. Também é permitido aos judeus levarem até dois cobertores, sendo estes incluídos, porém, no peso máximo de 25 quilos... Ordens elaboradas por instruções do Departamento de segurança Nacional (RSHA)
10
Sentia-se como um colegial diante do calvário duma redação escolar. Mas também saboreava a sensação que domina certos escritores, quando vomitam pelo mistério branco duma folha de papel as primeiras impressões dum futuro. Era o instante sagrado do que pode muito bem ser chamado de versão emotiva daquilo que pretendem escrever. Nestes momentos, não pensam em coisa alguma, exceto nas idéias que lhes chegam. Elas devem ser registradas impiedosamente antes que a memória se apague e eles percam os primeiros passos do que mais tarde deverá ser recomposto e reformulado, até que atinja a força e a forma que lhes satisfaça.
Relato
nº10
“Embora
pressionado por diversos lados, segundo consta, o papa não se deixou
comprometer com nenhuma declaração demonstrativa contra a deportação
de judeus de Roma. Mesmo sabendo que teria que contar com o ressentimento
de nossos opositores, e que os círculos protestantes nos países anglo-saxões
usariam isso como meios propagandísticos contra o catolicismo, o papa
tudo fez para não sobrecarregar o relacionamento com o governo alemão e
com as autoridades alemãs situadas em Roma, desviando-se dessa delicada
questão. Como não mais devem ser realizadas ações em Roma, com relação
à questão judaica, acredita-se que esteja liquidada esta desagradável
questão para a Alemanha e o Vaticano.”
Uma
carta do embaixador alemão junto ao Vaticano endereçada a Ernst von
Weizsäcker – Ministro do Exterior (23 de outubro de 1943)
11 Ele sabia muito bem que em filosofia o que realmente interessava era a supremacia da idéia, uma espécie de unidade mínima do pensamento, enquanto possibilidade de matéria-prima, sendo reservado à linguagem o papel de veículo. Surgia daí o impasse fundamental, pois ao sucumbir ao uso, as idéias transitavam entre a verdade e a retórica.
A
verdade, ele tinha certeza disto, seria sempre inacessível à cognição
humana. O fato dos homens serem dotados de graus variados de inteligência
talvez fosse a principal causa desta incômoda inibição. Isto fazia com
que eles pensassem de formas variadas, geralmente, antagônicas,
permitindo-lhes, obviamente, valores díspares.
Como
não tinham muitas luzes, enxergavam a curta distância, deixando-se quase
sempre apanhar pelo entrave do medo. Medo de tudo que fosse estranho, que
fugisse de seu potencial de compreensão. Esse medo, supostamente protetor,
incutia-lhes inevitavelmente a praga da intolerância. Cada um teria,
portanto,
uma
verdade, fazendo
com que
a
verdade sumisse do
mapa. Um estado de coisas nestas proporções só poderia gerar guerras e
mais guerras. Nisto talvez residisse a importância do mito da
Torre
de Babel
. Em vista da indigência espiritual existente, haveria sempre espaço de sobra à disposição da retórica. Ela, com seu apoio nas opiniões, estaria sempre sob a dependência do potencial de argumentação de seus usuários. Venceria quem melhor argumentasse, não quem estivesse necessariamente com a razão. Ele sabia muito bem que se comprometer com a retórica significava atuar muito mais no plano da emoção do que no racional. Um número exaustivo e incompatível de pseudo-verdades tinha perturbado o homem, desde longa data, principalmente, quando elas se transformavam em ideologias.
Seu
tempo totalitário era a prova irrefutável disso.
Com
bandeiras, música estridente, promessas de resgate de glórias passadas,
eloqüência de botequim e preconceitos arraigados, a verdade fora jogada
na sarjeta, vencendo uma opinião sustentada pela violência. Um candidato
que soubesse tocar no que houvesse de pior na alma humana, fazendo com que
isto assumisse as proporções de lei, conquistaria sempre o poder. O jogo
retórico das aparências sempre suplantava o bom senso. A retórica era a
mãe das escolhas erradas. Era como deitar-se com uma
Joan
Crawford
com sífilis.
Dar
aulas de filosofia, perdendo a voz por causa de
Sócrates
ou
Platão
, era
tão inútil quanto um padre bem intencionado, em seu púlpito, tentando
levar aos homens dominicais as palavras de Cristo. Cristo tornara-se uma
regra de etiqueta. E aquilo parecia sinistramente atemporal. Impunha-se ao mundo como um vestido preto de Mme. Chanel. Sem tempo para o desuso, o desgaste, o esquecimento. Sempre confinado à resistência e à durabilidade inabaláveis dum Modelo T . Relato nº11 “Os campos de extermínio nasceram em solo polonês. Neles não vivia nenhum prisioneiro além de um Comando de Limpeza. Eram eles: Chelmno, Belzec, Sobibor e Treblinka. Aqui as pessoas eram mortas imediatamente após sua chegada. Houve também campos conjugados – de extermínio e de concentração – como Majdanek e, sobretudo, Auschwitz-Birkenau, a maior companhia de trabalho forçado no Reich de Hitler e, ao mesmo tempo, o maior matadouro humano, que com quatro crematórios, alcançava uma ‘capacidade diária’ acima de 9.000 pessoas mortas por gás e incineradas. O assassinato em massa foi industrializado com as câmaras de gás. Não era possível fuzilar todas as pessoas que chegavam. As fábricas de mortes engoliram todas. Quem não era asfixiado no gás, era morto por trabalho, e quem não estava morto ainda, morreria dentro de três meses.” Gerhard Schoenberner
12
O que ele ouviu de seu gabinete, interrompendo definitivamente o fluxo de seus pensamentos e fazendo cessar o tique-taque da máquina, enquanto gotas geladas de suor escorreram por suas costas, tornara-se rotina a partir do outono de 1943. A faxina italiana viera um pouco mais tarde, coincidindo com a frouxidão e a queda de Mussolini . Embora, a partir de 1938, todos tivessem se transformado em cidadãos de segunda categoria.
Metido
em seu conforto, convicto de sua posição omissiva, silencioso e covarde,
carregando um queixo furado para onde quer que fosse,
Pio
XII
parecia muito satisfeito com
tudo o que estava acontecendo. Aliás, ele sempre preferira
Hitler
a ter de se submeter a
Stálin.
Relato
nº12
“Assim
o assassinato tornou-se um negócio. O sistema de exploração e
aproveitamento das pessoas foi sem falhas. Roubavam-se suas roupas e seus
objetos de valor, matavam-se seus familiares incapacitados ao trabalho,
utilizava-se sua força de trabalho até o esgotamento físico total, ou
mutilavam-se seus corpos com experiências médicas; extraíam-se ainda
dentes de ouro dos defuntos e transformavam-se suas cinzas em
fertilizantes. Matavam-se as pessoas isoladamente e em série, e
contabilizava-se o assassinato, pois queria-se saber o que estava sendo
feito, porque os superiores tinham de estar a par disso, e porque não se
acreditava que isso pudesse terminar.”
Gerhard
Schoenberner
13 E assim, dois automóveis pretos, quatro portas, em disparada desnecessária, estacionaram, sem nenhum critério e bruscamente, na frente do prédio. Desta feita, o alarme não era falso. Deles, saltaram meia dúzia de brutamontes à paisana. Estes homens sempre vestiam-se de escuro e portavam chapéus de abas largas. Muitas vezes, seus casacos eram de couro. Entretanto, o que cobria seus corpos em serviço dava-lhes um distanciamento uniformizante. Mesmo sem farda estavam fardados, sinalizando a quem os visse a marca duma polícia destinada ao trabalho mais sujo.
Sisudos
e arrogantes, entraram no edifício, subindo as escadas a trote. Não
chegaram a bater na porta com sua violência habitual. Ela estava aberta
à sua espera. Mesmo assim, conseguiram, na entrada, derrubar uma pequena
mesa, espatifando um
Gallé.
Indiferentes ao estrago, pisoteando pelos cacos de vidro,
encontraram-no de malas prontas, sentado numa poltrona, fumando um cigarro
recém aceso.
Fixos
à rotina, leram seu nome na lista quilométrica. Sem resistência ou
indignação, ele os acompanhou aonde quer que o estivessem levando,
apesar da mala ter sido considerada como além dos quilos permitidos,
obrigando-o a selecionar ainda mais o que já se encontrava racionado e
resumido. Tinha certeza
de que seria um a mais no depósito de carne que fora requisitado para o
entulhamento.
Relato
nº13
“Como
estátuas de mármore, os mortos permanecem de pé nas câmaras,
comprimidos uns aos outros. Não teria lugar para cair, e nem mesmo para
inclinar-se à frente. Distingue-se as famílias, mesmo mortas. Elas
agarram-se e, após a morte, permanecem fortemente entrelaçadas, de mãos
dadas, o que exige um trabalho penoso para separá-los, a fim de deixar as
câmaras livres para a próxima carga. Lançam-se os corpos para fora –
molhados de suor e urina, sujos de excrementos, sangue menstrual nas
pernas. Corpos de crianças voam pelo ar. Não há tempo.”
Primeiro-tenente
da SS Kurt Gerstein
14 Ele deixou o papel na underwood . Deitou um último olhar pela escrivaninha, pela lâmpada art deco , pelos livros, pelos quadros, pelas cortinas, pelos sofás e poltronas. Apesar do prédio ser da época da Unificação , ele havia conseguido deixá-lo internamente futurista , quase um objet d’art , propício ao jazz , a romances norte-americanos dos anos vinte, a cigarros e a muito gin-tonic . Não se preocupara em queimar nenhum papel. Deixara tudo como sempre estivera. Tinha certeza de que qualquer esforço teria sido inútil. Naquele estado de coisas, qualquer um nas suas condições, bastava estar incriminado numa daquelas listas para que já tivesse sentença condenatória. Desta feita, pouco lhe dizia respeito que as janelas ficassem abertas. Muito menos, que um cigarro, recém aceso, tivesse permanecido fumegante. Eventualidade que chamou a atenção dum dos gajos, obrigando-o a limpar o cinzeiro. Enquanto foi descendo, andar por andar, muitas portas abriram frestas às suas costas, bisbilhotando o que sabiam que aconteceria, mais cedo ou mais tarde, numa atitude de quem talvez acreditasse que o prédio não mais corria riscos, e que seus moradores estavam livres de perseguições e incertas dali em diante.
Da
janela do
Alfa-Romeo
, que muito se assemelhava a um escaravelho egípcio, ele
viu as ruas vazias, como se a cidade estivesse em estado de sítio.
Acinzentadas pela bruma de novembro, elas lhe pareceram mais belas do que
nunca. Mas logo haveria sol. E muitas folhas sujariam de dourado cada
passeio. O terracota habitual voltaria a reinar, sempre histórico e
arqueológico. Apesar de tudo, era como se a
Idade
Média
e a
Renascença
permanentes
zombassem das circunstâncias, mantendo-se indiferentes a seus invasores,
observando-os como um cachorro convive com as pulgas transitórias que
tentam sobreviver pelo interior de seu pelo.
É claro que se houvesse bombardeios e os escombros surgissem, tudo seria devidamente varrido do mapa. Mas talvez restassem pedaços falantes e tudo fosse resolvido como Pompéia e Herculano , e o passado mais recente continuasse se impondo como marca registrada duma cidade. Olhando os restos de Roma e da era dos papas, a pretensa glória do Duce fazia com que sua mancha ridícula de usurpador dos tempos modernos saltasse ainda mais a seus olhos cansados. A Itália estava morta há muito tempo, mas ela se recusava obstinadamente a aceitar sua condição de alma penada. A Itália não passava dum grupo de aristocratas decadentes, com seus punhos puídos, sobrevivendo às custas de glórias do passado. Pelo menos seu livro escrito às pressas encontrava-se à salvo em algum lugar pelo campo. Talvez tivesse sorte, e ele fosse editado depois daquela chuva , pouco lhe dizendo respeito que não estivesse mais lá para observar seus efeitos.
Deixava-se
seduzir pela expectativa de que tudo fosse muito rápido. Sim, a lâmina
da guilhotina deveria estar bem afiada quando chegasse sua hora, apesar do
cheiro nauseante de sangue poluindo a atmosfera. Entretanto, ele não se
deixava iludir pela sorte que o esperava. Sabia que a dor da carne estava
apenas começando. Além dos boches nunca terem sido muito delicados,
havia certo prazer em impor muito sofrimento desnecessário. Mas nada o
impedia de gastar energia e pensamento com as possibilidades de sobrevivência.
Mesmo que lutasse contra aquela onda de emotividade, aquilo era sempre
muito mais forte do que seu bom senso.
RELATO
14 “Duas dúzias de dentistas abrem as bocas com um gancho e procuram ouro. Ouro à esquerda, e sem ouro à direita. Outros dentistas arrancam dentes de ouro e coroas com boticão e martelos...”
Primeiro-tenente
da SS Kurt Gerstein
15
Ele flanava numa nebulosa toda sua, estava muito longe de tudo e de todos, inclusive, da satisfação, quando o Alfa Romeu foi jogado bem na frente do que havia sido uma escola. Constrangido a descer às pressas, foi escoltado pela calçada até o interior do edifício. Subindo inúmeros lanços de escada, interrompeu seus passos engrossando a fila que parecia perder-se na direção do andar superior.
Doentes
gemiam e tiritavam de frio, atirados pelo chão em macas improvisadas.
Velhos apoiavam-se em muletas. Crianças mastigavam pedaços de salame,
engordurando as roupas de quem estivesse ao alcance de suas mãozinhas.
Mulheres perdiam qualquer espécie de inibição, oferecendo os seios a
seus bebês, sob o olhar atento de seus maridos. Garotas sardentas, insensíveis
ao perigo em que estavam metidas, flertavam descaradamente com o par de
calças que lhes evocasse
Gary
Cooper
ou
Ronald Colman
. Muitas grávidas sucumbiam ao vômito, enquanto
alguns dos aleijados se esvaziavam, resignados ao confinamento de suas
macas de improviso. Muitos ouvidos fixavam-se nos ruídos que subiam as
escadas. Muitos, perseguindo compensações simbólicas, mantinham-se
agarrados ao que restara de seus bens, recusando-se a descansar suas malas
no chão.
Sorrisos
esboçavam-se entre estranhos. Perguntas nervosas e sussurrantes,
concentrando obviedades, ricocheteavam pelo imenso corredor. Mesmo que um
silêncio mortal fosse exigido, pequenos sinais de cumplicidade burlavam a
vigilância, anunciando alianças ocasionais. A situação peculiar fazia
com que a ansiedade comum fosse derretendo aos poucos qualquer espécie de
reserva. Logo ele percebeu que boatos e ilusões alimentavam a expectativa
do grupo.
Era
visível e patético constatar que muitos estavam convictos de que logo
voltariam para suas casas, crendo piamente que não sairiam dos arredores
da cidade. Entretanto, o silêncio cavo e os olhos de tristeza de outros
deixavam bem claro que não estavam alheios ao que lhes estava reservado,
embora conservassem suas certezas sinistras para o fogo da própria
desilusão.
Um
cheiro de mofo, de secreções múltiplas, desafiando a lei e a ordem dos
boches, misturado a pó de arroz e a perfume barato, empestava a atmosfera.
Era como se todos tivessem se arrumado às pressas, não tendo tempo para
um banho.
Enfim,
estática e buliçosa, chapinhando na impaciência, a fila era híbrida.
Entretanto, seu esnobismo latente o excluía como a rapa do tacho, fazendo
com que se sentisse metido no rebotalho da comunidade.
Perscrutando
a fila com certo interesse desidratado, ele constatou que nenhum rosto lhe
era familiar. Encontrava-se definitivamente sozinho, entregue ao sabor das
ondas, preso num mundo que zombava das suas escolhas. Aliás, ele sempre
estivera convicto do estado de solitude que acompanhava o homem do berço
ao túmulo.
“...I
like large parties. They’re so intimate. At small parties there isn’t
any privacy.”
Sem
querer, ele se lembrava de
The Great
Gatsby
, como que para aliviar a pressão
.
Fora um dos livros que mais vezes lera em toda sua vida.
Um
homem gordo, a sua frente, com olhar desconfiado, respirava com muita
dificuldade e cheirava muito mal. Ele era simplesmente repulsivo. Sua
dispnéia e seu peito cheio de gatos davam-lhe nos nervos. Ele estava
cheio de camadas de blusas e casacos de lã por baixo do pesado casacão
de
tweed.
Seu último casaco fora mal abotoado, agravando ainda mais
sua aparência desagradável. Seus sapatos não viam uma graxa
provavelmente desde a visita de
Hitler
,
em 1938. Suas mãos gordas, peludas e obscenas suportavam dois brilhantes
tão grandes quanto uma azeitona portuguesa. Ele merecia um bom taco de
baseball
na nuca. Ouvira dizer que os alemães estavam fazendo sabão
com gordura humana.
Mas
nada se comparava à
Marlene
Dietrich
subnutrida que não parava de pisar em seus calcanhares.
Metida num
tailleur
de lã e enrolada numa raposa, ela fedia a
Coty
,
oferecendo àquele mundo miserável seus incisivos manchados de batom
vermelho. Sugeria a possibilidade de já ter administrado um bordel.
Entretanto,
para ele, cansando-se naquela imobilidade compulsória, muito próxima
duma tortura, pouco importava, de repente, que aqueles cretinos tivessem
ou não lido
Scott Fitzgerald
ou
Sinclair Lewis
. Independente
disto ou daquilo, estavam todos no mesmo barco. As diferenças imprescindíveis
haviam sido derretidas.
Mas
houve um tempo, não muito distante, em que ele chegara a discriminar as
pessoas pelo gosto, pelos referenciais acumulados, pelas maneiras, até
mesmo, pela questão de berço, dando-se ao luxo de impor a si mesmo critérios
de exclusão que talvez fizessem a alegria dum nazista. A compaixão e a
tolerância nunca estiveram em sua cartilha. Bastava que alguém ferisse
uma de suas regras pessoais. Um sapato sujo, uma gravata inadequada, uma nódoa
de gordura pelas bordas dum copo, enfim, estas coisas eram suficientes
para que ele declarasse sempre uma guerra silenciosa contra o faltoso,
passando a desprezá-lo com todas as forças de sua capacidade para
desenvolver preconceitos.
Inesperadamente,
sentia-se traído por si mesmo, principalmente, na presença duma
igualdade pavorosa que reduzia todos a gado para o matadouro. Sim, uma
situação-limite atirava todos no mesmo barco. Melhor dizendo, no mesmo
porão do barco. Contorcendo a boca num sorriso amarelo, conseguindo
conter suas lágrimas, ele encontrou forças para agarrar-se em
Santo
Agostinho
, creditando-o como máxima:
todos
nasciam entre fezes e urina.
Aos
poucos, apesar da resistência e da arrogância de alguns, uma humildade
inesperada brotava, contagiando o grupo como epidemia. Mas ele tinha
certeza de que ela não poderia ser levada muito a sério, principalmente,
se não tivesse escrúpulos e julgasse a turba por ele próprio, o que
poderia ser um grande equívoco.
Aquela
humildade viscosa talvez fosse tão verdadeira quanto uma nota de três dólares.
Talvez tivesse sido provocada pelo medo invasor, insinuando-se debilmente
como uma possibilidade de saída circunstancial, não passando de máscara.
Entretanto, insurgia-se também como uma atitude perigosa: dependendo de
sua intensidade, principalmente, se roçasse no servilismo, ela aguçaria
ainda mais a aversão dos algozes. Para os boches, ela saltava como mais
uma evidência da inferioridade da sua turma. Como mais um motivo para que
deixassem de existir.
Ele
tinha certeza de que se retornassem, por algum revés da sorte, a suas
vidas anteriores, cada pescoço voltaria à sua ereção habitual, sumindo
em muitos aquela inesperada curvatura na coluna. Como alguém que retoma
seu agasalho dum guichê de chapelaria, numa noite de inverno, mal olhando
para quem confere o bilhete, deixando uma boate qualquer na direção da
própria cama, tão logo se sentissem seguros e protegidos por suas
garantias habituais, reassumiriam cada parcela de seus preconceitos,
voltando à cegueira de seu orgulho intrínseco.
Aquela
transformação paulatina em suas personalidades era tão passageira
quanto uma tempestade de verão.
Relato
n°15 “A ‘solução final’ da questão judaica significava o extermínio total de todos os judeus na Europa. Eu tinha a ordem de criar facilidades para o extermínio em Auschwitz, em junho de 1942. Naquela época já existiam os três seguintes campos de extermínio no Governo Geral: Belzec, Treblinka e Wolzek. Esses campos encontravam-se sob o comando especial da Polícia de Segurança (SIPO) e da SD. Visitei Treblinka para averiguar como eram realizados os extermínios. O comandante do campo de Treblinka disse-me que ele havia liquidado 80.000 judeus no decorrer de meio ano. Sua principal tarefa era liquidar todos os judeus do gueto de Varsóvia. Ele usava monóxido de carbono e, a seu ver, seus métodos não eram muito eficazes. Quando erigi a construção de extermínio de Auschwitz, usei, então, Zildon B, ácido cianídrico cristalizado, que introduzimos nas câmaras de morte através de uma pequena abertura. Demorava de 3 a 15 minutos, dependendo das condições climáticas, para matar as pessoas dentro das câmaras. Sabíamos quando estavam mortas, pois cessavam seus gritos. Geralmente, esperávamos meia hora antes de abrir as portas e afastar os cadáveres. Após sua retirada, nossos Comandos Especiais tiravam-lhes os anéis e o ouro de seus dentes.”
Rudolf
Ferdinand Hoss – Comandante do Campo de Auschwitz
16
Um
pouco atrapalhada pelas cãibras inesperadas e faminta, arrastando-se
lentamente, a fila começou a andar, deixando atrás de si manchas
disformes de detritos variados.
Surda
aos gritos que ordenavam que se apressasse, bifurcou-se em duas salas de
tamanho médio. Em poucos minutos, o comboio cansado desapareceu pelo seu
interior. Os corredores voltaram a seu silêncio.
Atrás
das portas fechadas, ao invés dos cinqüenta alunos habituais, que cada
recinto suportava, sala por sala entalou próximo de duzentas pessoas,
incluindo, homens e mulheres aptos para o trabalho, velhos, crianças em
idades variadas, doentes recém tirados de seus leitos e um bom número de
estropiados com suas muletas.
Lá
fora, atrás do edifício, onde muito se jogou futebol e basquete, e agora,
de vez em quando, servia como local para fuzilamentos sumários, mal as
salas haviam engolido seu rebanho, três caminhões de carga, sem toldo,
acabavam de chegar. Esperando pela continuidade da tarefa, os motoristas
acenderam displicentemente seus cigarros. Espichavam suas pernas em
caminhadas sem destino e jogavam conversa fora, quando, vindo na contramão,
uma súbita chuva fina e gelada, quase uma garoa, mas parecendo disposta a
encharcar a cidade, obrigou-os a voltar para suas cabines.
Bombas
longínquas, talvez apertando ainda mais o garrote da esperança, pareciam
dizer que nem tudo estava perdido. Muitos diziam que os Yanks estavam bem
próximos. Eles libertavam a Europa, distribuíam chocolates, leite
condensado,
chicletes - em troca, pisavam em minas alemãs e contraíam uma boa gonorréia
italiana.
Relato
nº16
“Apenas quinze minutos após, a chaminé começou a cuspir grossas nuvens de fumaça preta, com cheiro adocicado, que se espalhou sobre todo o campo. Surgiu uma labareda com mais de dois metros de altura. Logo, tornou-se insuportável o fedor de gordura e cabelos queimados. E os caminhões continuavam passando sempre pelo mesmo caminho. Contamos 60 viagens nesta noite... Pouco depois do último carro desaparecer, os primeiros caminhões retornaram carregados de bagagens e roupas dos mortos, que eram levadas ao depósito.” Ella Lingers-Reiner |
Augusto Mariante
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