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Um instante sublime
Augusto Mariante

“Minhas medidas não se tornarão enfraquecidas por eventuais inconvenientes jurídicos ou por alguma burocracia. Não tenho que praticar justiça, mas sim aniquilar e exterminar”

Hermann Göring - 1933

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Subitamente, ele foi interrompido por um pequeno raio de lembrança. Ele desabou, explodiu e incendiou sua mente, fazendo-o mastigar o café da manhã com um entusiasmo que parecia tê-lo abandonado para sempre. O entusiasmo da febre da juventude - ele sempre chapinha na ignorância acerca das coisas que realmente formam o mundo; tem a imprudência dos que se apaixonam por uma rosa, não percebendo que para apanhá-la correm o risco de muitos espinhos.

Sem nenhum esforço, nas condições em que se encontrava, aquela inesperada intromissão parecia ter o poder de conseguir expressá-lo. Mas, ao mesmo tempo, também parecia ter entrado em cena mais para reforçar seu infortúnio do que para trazer-lhe alguma alegria, deixando bem claro que não havia mais esperança, dobrando seus joelhos para que se resignasse à própria impotência.

Tudo talvez se conformasse a uma espécie de consolo apoiado na   analogia. Conseguia ver no outro o que acontecia com ele. Tudo acabava reduzido a variações em torno do mesmo tema. Sem que ninguém movesse um dedo, a História se repetia, acomodando suas repetições às circunstâncias de tempo e lugar.

Aquilo seria um descalabro para muitos, principalmente, para os que costumavam tapar o sol com peneira, tentando, em seu desespero, esconder-se como um débil avestruz. Oferecia vantagens duvidosas. Não ia muito além duma lucidez sinistra. Dependendo da resistência do freguês, teria meios implacáveis para deixá-lo ainda mais desiludido e deprimido do que já se encontrava. Era uma provocação a um colapso nervoso. Era um convite à próxima janela ou a um tiro na cabeça.

Mas para ele emergia como uma espécie peculiar de Graça Divina. Dizia-lhe silenciosamente que, apesar de condenado, ainda estava vivo e fazendo o que sempre fizera, desde que descobrira suas tendências e caminho. Morreria pensando, mesmo que faltasse papel e lápis. Provavelmente, até na hora em que fosse recolhido, como todos estavam sendo, estivesse na companhia daquele agente provocador intermitente. Ele sempre o predispunha a descobrir alguma coisa nova, fazendo com que se deliciasse com as conclusões achadas, mesmo que não pudesse dividi-las com quem quer que fosse.

Relato nº01

Gerhard Schoenberner

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“O anti-semitismo, assim como o anticomunismo, foi um elemento fundamental no programa de Hitler. Anti-semitismo foi o nome dado à fórmula mágica com a qual ele interpretou todos os males sociais e conquistou as massas desorientadas politicamente. Foi através do anti-semitismo que ele desfez o Parlamento, instituiu a ditadura e envolveu o povo alemão em seu crime”

Ele não conseguia perceber a tela em sua totalidade estupefaciente. Fragmentos dela insinuavam-se pela memória como as ruínas duma vila secular, encontradas ao acaso, durante um passeio pelo campo. As cores também desfilavam incertas pelo embaralhado que, aos poucos, ia tomando viço e forma, recompondo-se como um quebra-cabeça desfalcado. O nome do pintor também lhe escapava.

Onde vira aquilo? Eram tantos museus naquela época. Tantas paredes. Tantos quadros fixos nas paredes dum número excessivo de museus. Talvez fosse o Louvre. Com certeza fora no Louvre. Foi onde vira as cenas mais interessantes. E, muitas vezes, elas pertenciam a pintores desconhecidos – infelizes talentosos sem a sorte da posteridade. Nunca esteve interessado em pintura, mas nas cenas que muitas concentravam, contando alguma coisa. No Louvre, gastara muita energia e solas de sapato, palmilhando quilômetros num vai e vem assistemático, sempre coordenado pelo deslumbramento e pela curiosidade. Mal tinha quinze anos.

E aquele quadro causara-lhe forte impressão, tanto que jamais o havia esquecido, a ponto dele voltar a atormentá-lo, contaminando sua mente, sem pedir permissão ou mandar aviso, passando a latejar em seu imaginário, trazendo-lhe certo alívio, encaixando-se como uma luva em sua vida, por aqueles dias de incerteza e nervosismo sem trégua. Dias nas pontas dos pés.

Mas ele tinha certeza de que o importante era que captava sem censura um instante febril de Saint-Lazare . A tela fora deixada ao mundo com a incumbência de registrar uma mônada do Terror . Era histórica, jornalística, sem abandonar sua condição de obra-prima.

Relato nº 02

“As leis racistas de Nuremberg e seus 20 decretos posteriores arruinaram milhares de famílias e levaram inúmeros inocentes a julgamento. Uma família judaica que empregasse uma doméstica cristã poderia ser condenada por profanação de raça, da mesma forma que um ‘ariano’ que se casasse no exterior com uma mulher judia depois da promulgação das leis. Não se tem o número exato de condenações da justiça alemã proferidas com bases nas Leis de Nuremberg. Der Stürmer estima 558 condenações somente no ano de 1936. Após o cumprimento de diversos anos de reclusão penitenciária, sucedia, automaticamente, a transferência para um campo de concentração.”

Gerhard Schoenberner

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O que nunca fora apagado de sua cabeça era o escritor recostado no canto direito da parte inferior da tela, numa atitude de absoluto abandono e alheamento à aflição e ao desespero que o circundava. Ele fazia parte daquelas horas contadas. Também não seria poupado. Era tudo uma questão de comboio, espaço na próxima carroça. Mas ele agia como se estivesse na tranqüilidade dum gabinete. Aquilo talvez fosse uma forma meio desastrada de ter esperança, espantar o medo, procurando um jeito de distrair-se até que chegasse o momento inapelável.  

Ele não tinha muita certeza, mas talvez houvesse um facho de luz num amarelo pardacento tripartindo-se, triangularizando três possibilidades de estados de espírito, três pontos de vista, fazendo daquele quadro um instantâneo febril a respeito da incerteza de nossa posição no mundo das formas. Ele iluminava um oficial da Revolução que talvez atuasse como meirinho trazendo as condenações da hora. Ele permitia que o escritor roubasse a cena pondo-o em primeiro plano, mesmo que estivesse jogado num canto. Mas também não poupava uma mulher ebúrnea, vestida de branco, no alto dos degraus duma escada cor de lama. Se o poeta tentava escrever em seus últimos instantes, ela se apavorava com o que ouvia, contorcia o corpo, quase desfalecendo, recusando-se a deixar o lugar, mesmo que estivesse sendo empurrada na direção de sua sorte, enquanto que o suposto meirinho cumpria seu dever – o que poderia significar amor à causa, legítima defesa em relação à própria pele ou vingança de um passado consumido por humilhações.

Relato nº03

“Quando Treblinka fica superlotada, abandonam-se os vagões lacrados durante dias sobre os trilhos, até que todos os ocupantes morram sufocados”

Gerhard Schoenberner

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Naquela manhã cinzenta e fria, quem sabe prometendo chuva, fumando seu primeiro cigarro após o café da manhã, sem saber se almoçaria na própria casa, nada o impedia de sentir-se como um André Chénier atirado na postura dum saco de batatas num canto de Saint-Lazare, tentando extrair versos das circunstâncias.

E, pelo que conseguia lembrar, ele estava tenso como uma corda dum Stradivarius. Mas tenso por motivos mais elevados do que simplesmente debater-se como um peixe agônico, recém tirado duma rede, mendigando por mais alguns minutos de permanência neste mundo sempre hostil. A perturbação de seu rosto não enganava. Deixava evidente que eram motivos mais íntimos, dotados duma integridade que talvez se confundisse com egoísmo para alguns. Mas, acima de tudo, eram motivos ensangüentados na própria vontade de impor-se ao mundo mais pelo que ele fazia do que pelo que provavelmente fosse. Egoístas, talvez, mas eles transbordavam idiossincrasias pelos póros, deixando bem claro a quem visse o quadro que estava na presença de alguém que sabia o que desejava da vida, estando disposto a pagar o preço que lhe fosse cobrado.

  Incomunicável em sua bolha de evasão, indiferente ao burburinho de gente aflita que se espremia e se debatia, em meio à sujeira e à promiscuidade, sob pouca luz e nenhuma esperança, ele conseguia reduzir o apelo mendicante pela vida a um gesto insano e vulgar. Espiritualizava-se.

Talvez, em seus ouvidos, ainda ecoasse uma DuBarry protestando contra seu veredicto, deixando bem claro que ainda era muito cedo, fazendo das tripas coração para procrastinar o momento fatídico. Em desespero de causa, a amante de Luís XV , sua última favorita, deixou juízes e jurados atônitos com sua verborragia desesperada, literalmente, meretrizando a corte com a inconveniência de seu apelo pela vida. Agressiva e indignada, ela fugia à regra, resistindo a uma sentença desfavorável, sem a resignação habitual dos que passavam cabisbaixos por ali diariamente. O poeta talvez ainda lembrasse que ela, da Conciergerie à praça da Revolução, conseguiu transformar as ruas de Paris num grande fiasco, assustando a todos com seus lamentos e uivos, além do fato de contorcer-se e debater-se, sem descanso, como se estivesse subjugada por estertores mediúnicos, desafiando a escolta, a ponto dos carrascos encontrarem muita dificuldade em contê-la, fosse na carroça, fosse já no cadafalso. A DuBarry berrava pela vida, berrava que era inocente, berrava que podia comprar a própria liberdade, berrava que sempre pertencera ao povo. Com seu estardalhaço mendicante, ela conseguiu até espantar a ralé, coisa meio difícil num dia de espetáculo, que assustada, manteve-se silenciosa, sem ânimo para proferir ofensas ou blasfêmias, retirando-se respeitosamente em seu instante definitivo. Seu desespero era tamanho que ela teve prioridade na hora da execução, como um doente em estado grave numa emergência de hospital. Provavelmente, a única forma encontrada para acabar com aquela ladainha sinistra que punha todos sobressaltados e entregues a um desconforto intraduzível. Enfim, a DuBarry só sossegou o pito e calou a boca quando o cutelo desceu, deixando pelo cesto a imagem tenebrosa dum rosto tenso, marcado pelo pavor e pelo ressentimento.

Ele não conseguia recordar muito bem, mas, apesar do desespero ao redor do poeta insano, em alguns poucos ainda havia gesto e silêncio significativos, impregnados de discrição, deixando escapar sutis sinais apreensivos. Se não lhe falhava a memória, havia um par de supostos aristocratas, não muito bem iluminados, que, em pé, escutavam as novas que lhes chegavam, agindo com certo desdém à ordem que desabava sobre suas cabeças ainda empoadas.

Relato nº04

“Certa vez, quando eu caminhava ao longo do muro, me meti numa ação das crianças contrabandeando. Aparentemente, a ‘ação’ propriamente já tinha terminado. Restava algo a fazer. O menininho judeu, do outro lado do muro, teria que passar por um buraco trazendo o último saque. O corpinho já estava visível quando ele começou a gritar. Simultaneamente, vinham do lado ‘ariano’ xingamentos altos em alemão. Corri em auxílio à criança e quis puxá-la rapidamente através da fenda. Desgraçadamente, o quadril do menino ficou agarrado à abertura. Com as mãos e toda força, tentei puxá-lo para dentro. Ele continuou gritando terrivelmente. Do lado de lá do muro ouviam-se as violentas pancadas dos policiais. Quando finalmente consegui puxá-lo pela fenda, estava agonizando. Sua espinha dorsal estava esmagada.”

W. Szpilman

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Pelo que ia conseguindo reconstituir, o oficial da Revolução encontrava-se de pé, exuberante no corpo e na função que ocupava, com inúmeras folhas de papel. Ele lia das listas, que segurava com as duas mãos, os nomes dos escolhidos que iam saltar direto da prisão para o cadafalso, sem a perda de tempo dum julgamento, para que   Saint-Lazare se esvaziasse, pois, com toda certeza, em poucas horas, estaria transbordante novamente, até que todos os inimigos da causa estivessem dizimados.

Enquanto isso, a ralé se espremia, gesticulava e vociferava, como se o mundo lhe pertencesse, quase satisfeita, exigindo mais sangue, vendo aquela gente presa como aves gordas se debatendo numa gaiola de cozinha, prometendo o jantar daquela noite ou almoço do dia seguinte.

Os julgamentos excessivamente sumários assumiam-se como satisfações a suas imprecações e blasfêmias imperiosas. Quem sabe, matutava ele, recorrendo a um segundo cigarro, se as execuções não estivessem tão rápidas, a mulher pálida, vestida de branco, encontraria tempo suficiente para que suportasse o mesmo destino da Princesa de Lamballe , que fora, algum tempo antes, simplesmente reduzida pela população a pedaços sangüinolentos, oferecendo às ruas uma procissão delirante e devastadora...

Ele via aquele passado como uma época de irrupções intermitentes de assassinatos cruéis e sádicos. Eles chegavam a se confundir com espetáculos bacantes. Deixavam sempre um rol exaustivo de personagens imolados em nome do prazer pela destruição. Embora houvesse a camuflagem duma Revolução , e nelas, ele sabia muito bem, seria sempre impossível conter o excesso de violência e o derramamento de sangue, enquanto a temperatura ainda estivesse muito alta.

Hoje, entretanto, e isso muito o assustava, as coisas corriam em linha de montagem. Era como se a energia destrutiva se encontrasse sob controle. Era como se tivessem visto em Adam Smith um grande achado. E ela, aquela energia insalubre, só era ativada quando se fizesse preciso. O que não deixava de ser uma espécie muito peculiar de evolução. Sofisticavam-se os meios devastadores, mas a barbárie, embora objetivada, mantinha-se incólume, sem sofrer nenhum arranhão em sua essência, sempre a postos, a serviço do mal que nunca descansava – sua grande fornalha sempre encontrava alguém que a alimentasse. Não era agradável deixar-se convencer que o mal predominava no mundo.

Relato nº05

“Na retaguarda do Exército, foram liquidados 10.000 judeus sem a minha deliberação, embora tal eliminação sistemática tenha sido projetada por nós. Na cidade de Minsk foram liquidados 10.000 judeus, nos dias 28 e 29 de julho. Dentre eles, 6.500 judeus russos – a maioria velhos, mulheres e crianças; o restante eram judeus incapacitados ao trabalho, que foram mandados para Minsk por ordem do Führer. Vieram de Viena, Brünn, Bremen e Berlim, em novembro do ano passado.”

Wilhelm Kube - Generalkommissar

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Alguns anos depois, ficaria sabendo que o escritor era André Chénier, morto em 1794, sob o tacão de Robespierre , apesar dele, ironicamente, quarenta e oito horas após sua decapitação, ter sucumbido à mesma sorte, com a agravante de entregar sua cabeça já com um maxilar quebrado. Nunca se dera ao trabalho de ler seus versos - nunca gostara de poesia, embora devorasse romances. Mas nada o impediu de deixar-se apanhar pela atitude do sujeito momentos antes de subir o cadafalso.

E assim, com papel e lápis sobre a coxa esquerda, mal ouvindo a voz cidadã, arrolando mais trabalho para Mlle. Guillotine , recostado num banco rústico, de costas para a realidade febril que o impelia para a morte, insensível aos ratos e ao cheiro de excrementos, num cantinho da tela, mas de frente para o público que observaria sua atitude escapista ou sua forma peculiar de liberdade, André pensava a possibilidade de mais versos.

Com seu ar insano, ele se torturava pelo incomunicável do mot juste - uma pedra idiossincrática, específica, insubstituível, que deveria se incrustar na frase, oferecendo o efeito desejado. Mas ele também deveria saber que, geralmente, a defasagem, que existe entre o que um escritor imagina e aquilo que ele consegue escrever, sempre pisoteia no resultado, insatisfazendo o artífice. Se muitos se agarravam à Virgem, ele punha sua vida nas mãos das Musas. Se não fosse neste comboio, iria no próximo. O certo era que o nome estava na lista. O único receio da carne que talvez ainda lhe restasse era que a lâmina, que tanto trabalhava, não mais estivesse afiada quando descesse sobre seu pescoço. Nem sempre ela dava conta do recado, tamanha a demanda que lhe consumia o fio, sabotando aquilo que deveria ser rápido e indolor, permitindo que se transformasse num suplício, pois a execução transformava-se num jogo de tentativas. Agora vai! Não, ainda não! Mais uma vez! Agora! Mais uma vez! Mais uma! Agora! Ainda não! Ufa! Até que enfim! A próxima!

Mergulhado em si mesmo, Chénier também não percebia que estava na mira dum s ans-culotte mal-encarado, às voltas com seu cachimbo. Ele conseguia lembrar-se que o dedão de seu pé direito muito se assemelhava à cabeça duma naja. Ele ostentava uma unha suja e encascurrada, provavelmente povoada por fungos. Talvez fosse um dedão que apontasse porque acusava sua indignação de nunca ter sido lembrado pela vida durante séculos, portanto, um dedão revoltado que se fizera jacobino mais por vingança do que por justiça. Ele e seu dono pareciam loucos para mastigar Chénier , talvez irritados com seu silêncio eloqüente.

E ele, em sua inocência de quinze anos, ávido e curioso, pois Paris realmente fora sua festa, subindo e descendo escadarias que talvez também tivessem sido trilhadas por Catarina de Médicis , Ana da Áustria , Luís XIV , até mesmo, pelo Cardeal de Richelieu , nunca poderia imaginar que talvez estivesse na presença do próprio futuro, quando descobriu aquele quadro no meio de tantos outros. Ele se vira sem que soubesse que estava se vendo. Mas nunca era tarde para que descobrisse coisas importantes. O vaticínio chegara com certo atraso, mas a intuição se encarregara de entregar a carta enquanto ainda havia tempo.

Relato nº06

“Contornei o monte de terra e permaneci frente à imensa cova. As pessoas estavam tão prensadas umas às outras que só suas cabeças eram visíveis. De quase todas as cabeças escorria sangue sobre os ombros. Alguns fuzilados ainda se moviam. Alguns deles levantavam os braços e viravam a cabeça para mostrar que ainda estavam vivos. Três quartos da vala estavam preenchidos. Pelos meus cálculos, ali já continha perto de 1000 pessoas.”

Hermann Friedrich Gräbe – um engenheiro de construção

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Enquanto arrumava suas malas, pensava que aquilo que atravessara seus pensamentos lhe parecia óbvio, excessivamente banal, pois o mundo sempre estivera comprometido com analogias e repetições.

E dúvidas mais práticas também corroíam-lhe as idéias. Embora alguns tivessem deixado vazar que não perdesse tempo com aquilo. Parecia que não passava de teatro. Todos eram sempre apartados de seus pertences, mal chegavam a seu destino. Recebiam uniformes. As cabeças eram raspadas. Perdiam-se na burocracia dum número. Um volume no máximo. Roupas quentes.

Entretanto, algumas horas depois, quando a mala já estava pronta, e ele recorreu a um terceiro cigarro e a mais uma xícara de café, sua analogia assumira a forma orgulhosa duma descoberta, apesar dele saber muito bem que não havia mais espaço para aquela espécie de veleidade.

Mesmo assim, esparramando-se pelo sofá de couro, ele persistiu. Agarrou-se ao inesperado. Ficou durante longas horas numa espécie de dissecação do achado, chegando à conclusão de que servia realmente para alguma coisa. Mesmo que já não servisse para mais nada.

Perscrutando suas mãos delicadas, que ele tinha certeza de que talvez lhe trouxessem muitos problemas, ele conjeturava que, se pensasse pela carne, estaria apavorado, perplexo, constrangido à imobilidade. Pensar pela carne era sempre pensar pelo medo. Principalmente, pelo medo da dor física. O medo conduzia sempre ao pânico. Restavam sempre estátuas de sal.

Talvez tivesse sangue de barata. Fosse o que fosse. Mas encontrara forças para fugir do inevitável fazendo o que sempre havia feito. Pensar. Ler. Pôr no papel o que extraía dos pensamentos. Apesar de sentir-se fraco, porque vinha comendo muito mal.

Entretanto, ainda conseguia saltar da cama todas as manhãs, lavar-se, vestir-se, ficar em dúvida quanto à gravata, salpicar algumas gotas de sua água de colônia e caminhar na direção da sua mesa de trabalho, como se estivesse perseguindo um grande projeto.

Era como se estivesse na direção da universidade. Quando lhe era permitido ir ao clube. Quando não lhe era negado ter seu nome no catálogo telefônico. Quando podia publicar necrológicos no jornal. Quando não havia nenhum inconveniente em manter uma empregada ariana. Quando estava livre para casar com quem bem quisesse. Enfim, quando não lhe era vetado encontrar seus alunos e perscrutar os telhados em terracota e muitos campanários subjugados pela tela duma bruma cinzenta, sempre empilhados em sua perspectiva irregular, enquanto falava e caminhava pela sala de aula.

Naquela época, sentia que era capaz de fazer alguma coisa pelo próximo. Mesmo que seu auxílio não fosse além da idéia. No fundo, não passava dum indicador bibliográfico, com direito também a oferecer comentários sobre os livros prescritos. Mas era o que sabia fazer. Aliás, apesar dos percalços, ainda não havia esquecido o que sempre fizera.

Relato nº07

“Após a primeira execução, a segunda chamada de judeus tinha que se deitar sobre os corpos mortos, de tal maneira que as cabeças ficassem em cima dos pés dos cadáveres. Em cada vala eram jogadas umas 5 a 6 camadas de judeus. Chegava a 400 ou 500 o número de pessoas em cada uma. As execuções foram realizadas ao bel-prazer com armas de disparo rápido, carabinas e pistolas automáticas. Antes, muitos foram espancados até a morte. Era assombroso como os judeus entravam nas valas, apenas com consolações recíprocas para se encorajarem e facilitar o trabalho dos Comandos de Execuções.”

Alfred Metzner

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Ouvindo o carrilhão e observando uma ampulheta que se esvaía, ele reiterava a sensação dos minutos e das horas que sempre custavam a passar, embora décadas e séculos voassem, dando-lhe a certeza de que não haveria um Império de 1000 anos. E não precisava pensar muito a respeito. Bastava que alguém ouvisse a BBC e depositasse muita confiança no inverno russo – eles não tinham aprendido coisa alguma com Napoleão .

Apesar do seu infortúnio, apesar deles estarem no comando, não deixava de ser perversamente divertido observar aqueles energúmenos agindo da pior forma possível, como se fossem eternos e imortais. Os miseráveis esqueciam que todos sempre morriam no mundo, pouco importando se houve vitória ou derrota, riqueza ou pobreza, prazer ou dor. E depois da morte, o corpo era sempre transformado num exército de vermes famintos, cedendo seu espaço ao pó, sendo, provavelmente, a maior prova desse movimento eterno, sempre berrando silenciosamente que tudo o que é sólido se desmancha no ar.

Ele também se deixava congestionar momentaneamente pelo fato de que ninguém era inútil por inteiro, a ponto de não servir para coisa alguma. Ele sabia que o bem e o mal não apresentavam a pureza maniqueísta que tinha alimentado os contos de fadas e os folhetins. Quanto aos supostamente virtuosos, ele tinha certeza de que também apresentavam seus defeitos, uma vez que a virtude, sem flexibilidade e adequação contextual, gerava tanto fanatismo e intolerância quanto soberba, pois quem realmente era superior sabia compreender as fraquezas dos circundantes.

Portanto, era bem provável que um péssimo caráter também fosse um homem de qualidades, embora, em muitos casos, fosse difícil garimpá-las. Assim pensava ele, quando ouviu o que sempre temera, convicto de que era imprescindível abandonar qualquer preocupação infundada com a pureza das coisas, porque somente o fato de alguém estar aturdido pela pureza era um grave sintoma de que não a possuía, estando, provavelmente, muito afastado da sua ilusória conquista. Entretanto, para seu alívio momentâneo, eram os vizinhos da frente, às voltas com a Lancia preta, sempre em alta velocidade, percorrendo as ruas como uma exigência poética de Marinetti . Era um automóvel, mas o alarme era falso.

Relato nº08

“Cavar valas é o que demanda maior parte de tempo; a execução, em si, ocorre rapidamente (100 homens em 40 minutos...) A princípio, meus soldados não ficam impressionados. No segundo dia, porém, já se fez notável que somente um ou outro não ficava com os nervos aflorados ao realizar um extermínio de longo tempo. A impressão que tenho é que durante o extermínio não se dá nenhuma inibição psíquica. Isto, porém, ocorre no final do dia, quando reflete-se sobre isso em silêncio.”

Um primeiro-tenente do exército chamado Walther

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Cada veículo que passava sob as janelas aumentava sua ansiedade. Sobressaltado e indócil, naquela manhã, lá pelas tantas, viu-se contando retângulos de vidro, parquês, livros, o que estivesse à disposição de seu desconforto. A espera minava seu humor. O café enjoava seu estômago. Os cigarros começavam a arranhar sua garganta. Não sabia exatamente o que fazer com as horas que escoavam diante de sua impaciência. De repente, sem transição ou titubeio, saltou do sofá para sua Underwood , pondo-se a dedilhar pelo teclado, com a destreza duma secretária padrão.

Relato nº09

“Os judeus a serem evacuados devem ser orientados com relação à bagagem. Podem levar, no máximo, 25 quilos. Além disso, podem levar alimentos para o período de dois dias. As autoridades policiais locais têm que recolher a bagagem dos judeus no dia 28 de março de 1942, e guardá-la até a partida. Ela tem que ser pesada e vistoriada rigorosamente antes da partida; não pode conter armas (armas de tiro, explosivos, facas, tesouras, venenos, medicamentos etc.). A bagagem acima de 25 quilos dever ser reduzida. Também é permitido aos judeus levarem até dois cobertores, sendo estes incluídos, porém, no peso máximo de 25 quilos...

Ordens elaboradas por instruções do Departamento de segurança Nacional (RSHA)

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Sentia-se como um colegial diante do calvário duma redação escolar. Mas também saboreava a sensação que domina certos escritores, quando vomitam pelo mistério branco duma folha de papel as primeiras impressões dum futuro. Era o instante sagrado do que pode muito bem ser chamado de versão emotiva daquilo que pretendem escrever. Nestes momentos, não pensam em coisa alguma, exceto nas idéias que lhes chegam. Elas devem ser registradas impiedosamente antes que a memória se apague e eles percam os primeiros passos do que mais tarde deverá ser recomposto e reformulado, até que atinja a força e a forma que lhes satisfaça.

Relato nº10

“Embora pressionado por diversos lados, segundo consta, o papa não se deixou comprometer com nenhuma declaração demonstrativa contra a deportação de judeus de Roma. Mesmo sabendo que teria que contar com o ressentimento de nossos opositores, e que os círculos protestantes nos países anglo-saxões usariam isso como meios propagandísticos contra o catolicismo, o papa tudo fez para não sobrecarregar o relacionamento com o governo alemão e com as autoridades alemãs situadas em Roma, desviando-se dessa delicada questão. Como não mais devem ser realizadas ações em Roma, com relação à questão judaica, acredita-se que esteja liquidada esta desagradável questão para a Alemanha e o Vaticano.”

Uma carta do embaixador alemão junto ao Vaticano endereçada a Ernst von Weizsäcker – Ministro do Exterior (23 de outubro de 1943)

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Ele sabia muito bem que em filosofia o que realmente interessava era a supremacia da idéia, uma espécie de unidade mínima do pensamento, enquanto possibilidade de matéria-prima, sendo reservado à linguagem o papel de veículo. Surgia daí o impasse fundamental, pois ao sucumbir ao uso, as idéias transitavam entre a verdade e a retórica.

A verdade, ele tinha certeza disto, seria sempre inacessível à cognição humana. O fato dos homens serem dotados de graus variados de inteligência talvez fosse a principal causa desta incômoda inibição. Isto fazia com que eles pensassem de formas variadas, geralmente, antagônicas, permitindo-lhes, obviamente, valores díspares.

Como não tinham muitas luzes, enxergavam a curta distância, deixando-se quase sempre apanhar pelo entrave do medo. Medo de tudo que fosse estranho, que fugisse de seu potencial de compreensão. Esse medo, supostamente protetor, incutia-lhes inevitavelmente a praga da intolerância. Cada um teria, portanto, uma verdade, fazendo com que a verdade sumisse do mapa. Um estado de coisas nestas proporções só poderia gerar guerras e mais guerras. Nisto talvez residisse a importância do mito da Torre de Babel .

Em vista da indigência espiritual existente, haveria sempre espaço de sobra à disposição da retórica. Ela, com seu apoio nas opiniões, estaria sempre sob a dependência do potencial de argumentação de seus usuários. Venceria quem melhor argumentasse, não quem estivesse necessariamente com a razão. Ele sabia muito bem que se comprometer com a retórica significava atuar muito mais no plano da emoção do que no racional. Um número exaustivo e incompatível de pseudo-verdades tinha perturbado o homem, desde longa data, principalmente, quando elas se transformavam em ideologias.

Seu tempo totalitário era a prova irrefutável disso.

Com bandeiras, música estridente, promessas de resgate de glórias passadas, eloqüência de botequim e preconceitos arraigados, a verdade fora jogada na sarjeta, vencendo uma opinião sustentada pela violência. Um candidato que soubesse tocar no que houvesse de pior na alma humana, fazendo com que isto assumisse as proporções de lei, conquistaria sempre o poder. O jogo retórico das aparências sempre suplantava o bom senso. A retórica era a mãe das escolhas erradas. Era como deitar-se com uma Joan Crawford com sífilis.

Dar aulas de filosofia, perdendo a voz por causa de Sócrates ou Platão , era tão inútil quanto um padre bem intencionado, em seu púlpito, tentando levar aos homens dominicais as palavras de Cristo. Cristo tornara-se uma regra de etiqueta.

E aquilo parecia sinistramente atemporal. Impunha-se ao mundo como um vestido preto de Mme. Chanel. Sem tempo para o desuso, o desgaste, o esquecimento. Sempre confinado à resistência e à durabilidade inabaláveis dum Modelo T . Relato 

nº11

“Os campos de extermínio nasceram em solo polonês. Neles não vivia nenhum prisioneiro além de um Comando de Limpeza. Eram eles: Chelmno, Belzec, Sobibor e Treblinka. Aqui as pessoas eram mortas imediatamente após sua chegada. Houve também campos conjugados – de extermínio e de concentração – como Majdanek e, sobretudo, Auschwitz-Birkenau, a maior companhia de trabalho forçado no Reich de Hitler e, ao mesmo tempo, o maior matadouro humano, que com quatro crematórios, alcançava uma ‘capacidade diária’ acima de 9.000 pessoas mortas por gás e incineradas. O assassinato em massa foi industrializado com as câmaras de gás. Não era possível fuzilar todas as pessoas que chegavam. As fábricas de mortes engoliram todas. Quem não era asfixiado no gás, era morto por trabalho, e quem não estava morto ainda, morreria dentro de três meses.”

Gerhard Schoenberner

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O que ele ouviu de seu gabinete, interrompendo definitivamente o fluxo de seus pensamentos e fazendo cessar o tique-taque da máquina, enquanto gotas geladas de suor escorreram por suas costas, tornara-se rotina a partir do outono de 1943. A faxina italiana viera um pouco mais tarde, coincidindo com a frouxidão e a queda de Mussolini . Embora, a partir de 1938, todos tivessem se transformado em cidadãos de segunda categoria.

Metido em seu conforto, convicto de sua posição omissiva, silencioso e covarde, carregando um queixo furado para onde quer que fosse, Pio XII parecia muito satisfeito com tudo o que estava acontecendo. Aliás, ele sempre preferira Hitler a ter de se submeter a Stálin.

Relato nº12

“Assim o assassinato tornou-se um negócio. O sistema de exploração e aproveitamento das pessoas foi sem falhas. Roubavam-se suas roupas e seus objetos de valor, matavam-se seus familiares incapacitados ao trabalho, utilizava-se sua força de trabalho até o esgotamento físico total, ou mutilavam-se seus corpos com experiências médicas; extraíam-se ainda dentes de ouro dos defuntos e transformavam-se suas cinzas em fertilizantes. Matavam-se as pessoas isoladamente e em série, e contabilizava-se o assassinato, pois queria-se saber o que estava sendo feito, porque os superiores tinham de estar a par disso, e porque não se acreditava que isso pudesse terminar.”

Gerhard Schoenberner

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E assim, dois automóveis pretos, quatro portas, em disparada desnecessária, estacionaram, sem nenhum critério e bruscamente, na frente do prédio. Desta feita, o alarme não era falso.

Deles, saltaram meia dúzia de brutamontes à paisana. Estes homens sempre vestiam-se de escuro e portavam chapéus de abas largas. Muitas vezes, seus casacos eram de couro. Entretanto, o que cobria seus corpos em serviço dava-lhes um distanciamento uniformizante. Mesmo sem farda estavam fardados, sinalizando a quem os visse a marca duma polícia destinada ao trabalho mais sujo.

Sisudos e arrogantes, entraram no edifício, subindo as escadas a trote. Não chegaram a bater na porta com sua violência habitual. Ela estava aberta à sua espera. Mesmo assim, conseguiram, na entrada, derrubar uma pequena mesa, espatifando um Gallé. Indiferentes ao estrago, pisoteando pelos cacos de vidro, encontraram-no de malas prontas, sentado numa poltrona, fumando um cigarro recém aceso.

Fixos à rotina, leram seu nome na lista quilométrica. Sem resistência ou indignação, ele os acompanhou aonde quer que o estivessem levando, apesar da mala ter sido considerada como além dos quilos permitidos, obrigando-o a selecionar ainda mais o que já se encontrava racionado e resumido. Tinha certeza de que seria um a mais no depósito de carne que fora requisitado para o entulhamento.

Relato nº13

“Como estátuas de mármore, os mortos permanecem de pé nas câmaras, comprimidos uns aos outros. Não teria lugar para cair, e nem mesmo para inclinar-se à frente. Distingue-se as famílias, mesmo mortas. Elas agarram-se e, após a morte, permanecem fortemente entrelaçadas, de mãos dadas, o que exige um trabalho penoso para separá-los, a fim de deixar as câmaras livres para a próxima carga. Lançam-se os corpos para fora – molhados de suor e urina, sujos de excrementos, sangue menstrual nas pernas. Corpos de crianças voam pelo ar. Não há tempo.”

Primeiro-tenente da SS Kurt Gerstein

14

Ele deixou o papel na underwood .

Deitou um último olhar pela escrivaninha, pela lâmpada art deco , pelos livros, pelos quadros, pelas cortinas, pelos sofás e poltronas.

Apesar do prédio ser da época da Unificação , ele havia conseguido deixá-lo internamente futurista , quase um objet d’art , propício ao jazz , a romances norte-americanos dos anos vinte, a cigarros e a muito gin-tonic .

Não se preocupara em queimar nenhum papel. Deixara tudo como sempre estivera. Tinha certeza de que qualquer esforço teria sido inútil. Naquele estado de coisas, qualquer um nas suas condições, bastava estar incriminado numa daquelas listas para que já tivesse sentença condenatória.

Desta feita, pouco lhe dizia respeito que as janelas ficassem abertas. Muito menos, que um cigarro, recém aceso, tivesse permanecido fumegante. Eventualidade que chamou a atenção dum dos gajos, obrigando-o a limpar o cinzeiro.

Enquanto foi descendo, andar por andar, muitas portas abriram frestas às suas costas, bisbilhotando o que sabiam que aconteceria, mais cedo ou mais tarde, numa atitude de quem talvez acreditasse que o prédio não mais corria riscos, e que seus moradores estavam livres de perseguições e incertas dali em diante.

Da janela do Alfa-Romeo , que muito se assemelhava a um escaravelho egípcio, ele viu as ruas vazias, como se a cidade estivesse em estado de sítio. Acinzentadas pela bruma de novembro, elas lhe pareceram mais belas do que nunca. Mas logo haveria sol. E muitas folhas sujariam de dourado cada passeio. O terracota habitual voltaria a reinar, sempre histórico e arqueológico. Apesar de tudo, era como se a Idade Média e a Renascença permanentes zombassem das circunstâncias, mantendo-se indiferentes a seus invasores, observando-os como um cachorro convive com as pulgas transitórias que tentam sobreviver pelo interior de seu pelo.  

É claro que se houvesse bombardeios e os escombros surgissem, tudo seria devidamente varrido do mapa. Mas talvez restassem pedaços falantes e tudo fosse resolvido como Pompéia e Herculano , e o passado mais recente continuasse se impondo como marca registrada duma cidade. Olhando os restos de Roma e da era dos papas, a pretensa glória do Duce fazia com que sua mancha ridícula de usurpador dos tempos modernos saltasse ainda mais a seus olhos cansados. A Itália estava morta há muito tempo, mas ela se recusava obstinadamente a aceitar sua condição de alma penada. A Itália não passava dum grupo de aristocratas decadentes, com seus punhos puídos, sobrevivendo às custas de glórias do passado.

Pelo menos seu livro escrito às pressas encontrava-se à salvo em algum lugar pelo campo. Talvez tivesse sorte, e ele fosse editado depois daquela chuva , pouco lhe dizendo respeito que não estivesse mais lá para observar seus efeitos.

Deixava-se seduzir pela expectativa de que tudo fosse muito rápido. Sim, a lâmina da guilhotina deveria estar bem afiada quando chegasse sua hora, apesar do cheiro nauseante de sangue poluindo a atmosfera. Entretanto, ele não se deixava iludir pela sorte que o esperava. Sabia que a dor da carne estava apenas começando. Além dos boches nunca terem sido muito delicados, havia certo prazer em impor muito sofrimento desnecessário. Mas nada o impedia de gastar energia e pensamento com as possibilidades de sobrevivência. Mesmo que lutasse contra aquela onda de emotividade, aquilo era sempre muito mais forte do que seu bom senso.

RELATO 14

  “Duas dúzias de dentistas abrem as bocas com um gancho e procuram ouro. Ouro à esquerda, e sem ouro à direita. Outros dentistas arrancam dentes de ouro e coroas com boticão e martelos...”

Primeiro-tenente da SS Kurt Gerstein

15

Ele flanava numa nebulosa toda sua, estava muito longe de tudo e de todos, inclusive, da satisfação, quando o Alfa Romeu foi jogado bem na frente do que havia sido uma escola. Constrangido a descer às pressas, foi escoltado pela calçada até o interior do edifício. Subindo inúmeros lanços de escada, interrompeu seus passos engrossando a fila que parecia perder-se na direção do andar superior.

Doentes gemiam e tiritavam de frio, atirados pelo chão em macas improvisadas. Velhos apoiavam-se em muletas. Crianças mastigavam pedaços de salame, engordurando as roupas de quem estivesse ao alcance de suas mãozinhas. Mulheres perdiam qualquer espécie de inibição, oferecendo os seios a seus bebês, sob o olhar atento de seus maridos. Garotas sardentas, insensíveis ao perigo em que estavam metidas, flertavam descaradamente com o par de calças que lhes evocasse Gary Cooper ou Ronald Colman . Muitas grávidas sucumbiam ao vômito, enquanto alguns dos aleijados se esvaziavam, resignados ao confinamento de suas macas de improviso. Muitos ouvidos fixavam-se nos ruídos que subiam as escadas. Muitos, perseguindo compensações simbólicas, mantinham-se agarrados ao que restara de seus bens, recusando-se a descansar suas malas no chão.

Sorrisos esboçavam-se entre estranhos. Perguntas nervosas e sussurrantes, concentrando obviedades, ricocheteavam pelo imenso corredor. Mesmo que um silêncio mortal fosse exigido, pequenos sinais de cumplicidade burlavam a vigilância, anunciando alianças ocasionais. A situação peculiar fazia com que a ansiedade comum fosse derretendo aos poucos qualquer espécie de reserva. Logo ele percebeu que boatos e ilusões alimentavam a expectativa do grupo.

Era visível e patético constatar que muitos estavam convictos de que logo voltariam para suas casas, crendo piamente que não sairiam dos arredores da cidade. Entretanto, o silêncio cavo e os olhos de tristeza de outros deixavam bem claro que não estavam alheios ao que lhes estava reservado, embora conservassem suas certezas sinistras para o fogo da própria desilusão.

Um cheiro de mofo, de secreções múltiplas, desafiando a lei e a ordem dos boches, misturado a pó de arroz e a perfume barato, empestava a atmosfera. Era como se todos tivessem se arrumado às pressas, não tendo tempo para um banho.

Enfim, estática e buliçosa, chapinhando na impaciência, a fila era híbrida. Entretanto, seu esnobismo latente o excluía como a rapa do tacho, fazendo com que se sentisse metido no rebotalho da comunidade.

Perscrutando a fila com certo interesse desidratado, ele constatou que nenhum rosto lhe era familiar. Encontrava-se definitivamente sozinho, entregue ao sabor das ondas, preso num mundo que zombava das suas escolhas. Aliás, ele sempre estivera convicto do estado de solitude que acompanhava o homem do berço ao túmulo. “...I like large parties. They’re so intimate. At small parties there isn’t any privacy.” Sem querer, ele se lembrava de The Great Gatsby , como que para aliviar a pressão . Fora um dos livros que mais vezes lera em toda sua vida.

Um homem gordo, a sua frente, com olhar desconfiado, respirava com muita dificuldade e cheirava muito mal. Ele era simplesmente repulsivo. Sua dispnéia e seu peito cheio de gatos davam-lhe nos nervos. Ele estava cheio de camadas de blusas e casacos de lã por baixo do pesado casacão de tweed. Seu último casaco fora mal abotoado, agravando ainda mais sua aparência desagradável. Seus sapatos não viam uma graxa provavelmente desde a visita de Hitler , em 1938. Suas mãos gordas, peludas e obscenas suportavam dois brilhantes tão grandes quanto uma azeitona portuguesa. Ele merecia um bom taco de baseball na nuca. Ouvira dizer que os alemães estavam fazendo sabão com gordura humana.

Mas nada se comparava à Marlene Dietrich subnutrida que não parava de pisar em seus calcanhares. Metida num tailleur de lã e enrolada numa raposa, ela fedia a Coty , oferecendo àquele mundo miserável seus incisivos manchados de batom vermelho. Sugeria a possibilidade de já ter administrado um bordel.

Entretanto, para ele, cansando-se naquela imobilidade compulsória, muito próxima duma tortura, pouco importava, de repente, que aqueles cretinos tivessem ou não lido Scott Fitzgerald ou Sinclair Lewis . Independente disto ou daquilo, estavam todos no mesmo barco. As diferenças imprescindíveis haviam sido derretidas.

Mas houve um tempo, não muito distante, em que ele chegara a discriminar as pessoas pelo gosto, pelos referenciais acumulados, pelas maneiras, até mesmo, pela questão de berço, dando-se ao luxo de impor a si mesmo critérios de exclusão que talvez fizessem a alegria dum nazista. A compaixão e a tolerância nunca estiveram em sua cartilha. Bastava que alguém ferisse uma de suas regras pessoais. Um sapato sujo, uma gravata inadequada, uma nódoa de gordura pelas bordas dum copo, enfim, estas coisas eram suficientes para que ele declarasse sempre uma guerra silenciosa contra o faltoso, passando a desprezá-lo com todas as forças de sua capacidade para desenvolver preconceitos.

Inesperadamente, sentia-se traído por si mesmo, principalmente, na presença duma igualdade pavorosa que reduzia todos a gado para o matadouro. Sim, uma situação-limite atirava todos no mesmo barco. Melhor dizendo, no mesmo porão do barco. Contorcendo a boca num sorriso amarelo, conseguindo conter suas lágrimas, ele encontrou forças para agarrar-se em Santo Agostinho , creditando-o como máxima: todos nasciam entre fezes e urina.

Aos poucos, apesar da resistência e da arrogância de alguns, uma humildade inesperada brotava, contagiando o grupo como epidemia. Mas ele tinha certeza de que ela não poderia ser levada muito a sério, principalmente, se não tivesse escrúpulos e julgasse a turba por ele próprio, o que poderia ser um grande equívoco.

Aquela humildade viscosa talvez fosse tão verdadeira quanto uma nota de três dólares. Talvez tivesse sido provocada pelo medo invasor, insinuando-se debilmente como uma possibilidade de saída circunstancial, não passando de máscara. Entretanto, insurgia-se também como uma atitude perigosa: dependendo de sua intensidade, principalmente, se roçasse no servilismo, ela aguçaria ainda mais a aversão dos algozes. Para os boches, ela saltava como mais uma evidência da inferioridade da sua turma. Como mais um motivo para que deixassem de existir.

Ele tinha certeza de que se retornassem, por algum revés da sorte, a suas vidas anteriores, cada pescoço voltaria à sua ereção habitual, sumindo em muitos aquela inesperada curvatura na coluna. Como alguém que retoma seu agasalho dum guichê de chapelaria, numa noite de inverno, mal olhando para quem confere o bilhete, deixando uma boate qualquer na direção da própria cama, tão logo se sentissem seguros e protegidos por suas garantias habituais, reassumiriam cada parcela de seus preconceitos, voltando à cegueira de seu orgulho intrínseco.

Aquela transformação paulatina em suas personalidades era tão passageira quanto uma tempestade de verão.

Relato n°15

“A ‘solução final’ da questão judaica significava o extermínio total de todos os judeus na Europa. Eu tinha a ordem de criar facilidades para o extermínio em Auschwitz, em junho de 1942. Naquela época já existiam os três seguintes campos de extermínio no Governo Geral: Belzec, Treblinka e Wolzek. Esses campos encontravam-se sob o comando especial da Polícia de Segurança (SIPO) e da SD. Visitei Treblinka para averiguar como eram realizados os extermínios. O comandante do campo de Treblinka disse-me que ele havia liquidado 80.000 judeus no decorrer de meio ano. Sua principal tarefa era liquidar todos os judeus do gueto de Varsóvia. Ele usava monóxido de carbono e, a seu ver, seus métodos não eram muito eficazes. Quando erigi a construção de extermínio de Auschwitz, usei, então, Zildon B, ácido cianídrico cristalizado, que introduzimos nas câmaras de morte através de uma pequena abertura. Demorava de 3 a 15 minutos, dependendo das condições climáticas, para matar as pessoas dentro das câmaras. Sabíamos quando estavam mortas, pois cessavam seus gritos. Geralmente, esperávamos meia hora antes de abrir as portas e afastar os cadáveres. Após sua retirada, nossos Comandos Especiais tiravam-lhes os anéis e o ouro de seus dentes.”

Rudolf Ferdinand Hoss – Comandante do Campo de Auschwitz

16

Um pouco atrapalhada pelas cãibras inesperadas e faminta, arrastando-se lentamente, a fila começou a andar, deixando atrás de si manchas disformes de detritos variados.

Surda aos gritos que ordenavam que se apressasse, bifurcou-se em duas salas de tamanho médio. Em poucos minutos, o comboio cansado desapareceu pelo seu interior. Os corredores voltaram a seu silêncio.

Atrás das portas fechadas, ao invés dos cinqüenta alunos habituais, que cada recinto suportava, sala por sala entalou próximo de duzentas pessoas, incluindo, homens e mulheres aptos para o trabalho, velhos, crianças em idades variadas, doentes recém tirados de seus leitos e um bom número de estropiados com suas muletas.

Lá fora, atrás do edifício, onde muito se jogou futebol e basquete, e agora, de vez em quando, servia como local para fuzilamentos sumários, mal as salas haviam engolido seu rebanho, três caminhões de carga, sem toldo, acabavam de chegar. Esperando pela continuidade da tarefa, os motoristas acenderam displicentemente seus cigarros. Espichavam suas pernas em caminhadas sem destino e jogavam conversa fora, quando, vindo na contramão, uma súbita chuva fina e gelada, quase uma garoa, mas parecendo disposta a encharcar a cidade, obrigou-os a voltar para suas cabines.

Bombas longínquas, talvez apertando ainda mais o garrote da esperança, pareciam dizer que nem tudo estava perdido. Muitos diziam que os Yanks estavam bem próximos. Eles libertavam a Europa, distribuíam chocolates, leite condensado, chicletes - em troca, pisavam em minas alemãs e contraíam uma boa gonorréia italiana.

Relato nº16

“Apenas quinze minutos após, a chaminé começou a cuspir grossas nuvens de fumaça preta, com cheiro adocicado, que se espalhou sobre todo o campo. Surgiu uma labareda com mais de dois metros de altura. Logo, tornou-se insuportável o fedor de gordura e cabelos queimados. E os caminhões continuavam passando sempre pelo mesmo caminho. Contamos 60 viagens nesta noite... Pouco depois do último carro desaparecer, os primeiros caminhões retornaram carregados de bagagens e roupas dos mortos, que eram levadas ao depósito.”

Ella Lingers-Reiner

Augusto Mariante 

mariantefurtado@hotmail.com

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