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Fox-trot
Augusto Mariante

Sidney era preto e branco - mais preto do que branco, diga-se de passagem.

Impedido de manifestar-se em toda sua plenitude felina, e isto por razões inevitáveis que o protegiam de si mesmo, o que talvez significasse esbórnia noturna e cheiros pouco agradáveis empestando uma casa, a ortopedia amorosa transformou-o num eunuco, deliberando, inclusive, o espaço onde deveria realizar seus expurgos diários, fosse o sólido, fosse o líquido, garantindo certo sossego a seus donos, arrematando seu ingresso em sociedade com uma coleira azul, arte final que lhe sugeriu a postura duvidosa de bom moço. Graças a Deus, e também à inteligência de Sidney, o processo civilizatório a que foi submetido não redundou em neuroses sôfregas. Garoto esperto, soube tirar partido de toda repressão que lhe fora impingida, sublimando-a a serviço do charme e da sedução. Tornou-se dandy! Dandy, por favor! Nunca, uma bicha afetada!

Entretanto, e jamais devemos negligenciar o peso de uma adversativa, desde que não houvesse inibição civilizatória, deixando-o entregue aos impulsos do próprio instinto, revelava-se um exímio caçador, sempre a serviço de sua intimidade com a noite arcaica, atracando-se ao passarinho que o tentasse, pouco lhe dizendo respeito que sua comida viesse de um supermercado. Tornara-se um perfeito gentleman: jamais se atrapalharia com talheres de peixe, embora estivesse sempre disposto a comparecer a uma caça à raposa. Delicadeza no comer, mas sangue vertido no momento adequado. Enfim, absolutamente preparado para enfrentar o Mundo, viessem os desafios de Buckingham ou de um inesperado convite para um ensopadinho de chuchu com camarão na Rocinha, mesmo que corresse o risco de avistar-se com uma escopeta de sainha plissada.   

Portanto, plebeu e insinuante, meio apache, quase uma Josephine Baker sem tutu de bananas, deixava bem claro, a quem tivesse olhos de ver, que a questão de berço às vezes conspira contra as expectativas de quem quer que seja: através dele, era-lhe possível adquirir a certeza de que há príncipes que sugerem estivadores, havendo, em contrapartida, mendigos que podem muito bem passar por duques, desde que lhes ofereçam uma oportunidade sincera. Sidney a teve!

Pela superfície de seu nariz, sob a forma de um irresistível coração, brotara uma pincelada preta. Ela, a quem sabe pinta, mal fora detectada, insurgira-se, em seu imaginário, como aquelas manchas de nascença, que muitas vezes sinalizam identificações mirabolantes nos romances antigos, aqueles que suportam mais de quatrocentas páginas de mistério e ansiedade, puro elemento de sustentação, salvando ou perdendo seus heróis para todo o sempre. Indo mais a diante, em suas reflexões sobre a pinta do Sidney, ele também a trancafiou como uma sugestão de Clark Gable, desde que se submetesse a um bigode, de Chaplin, ou de Hitler, até mesmo, do já esquecido Gato Félix, isto dependendo do gosto ou do grau de perversidade referencial do freguês.

Para ele, quem sabe alma muito antiga, sempre fiel à própria memória inabordável, bem ou mal arranjado, Sidney desfilava pelas cercanias de sua percepção como pura insinuação histórica, mesmo que ignorasse, pelos refolhos de seu cérebro de gato, toda a calamidade que conseguia provocar em seus devaneios, e tudo acabava em Fox trot, pouco importando que ninguém mais ouvisse Happy Feet, ou que Bing Crosby e Paul Whiteman não passassem de resíduos na direção da latrina do esquecimento.

E foi justamente esta suposta insurgência histórica que fez com que Sidney, mesmo que não fosse dele, desabasse em suas graças, arrebatando o que talvez ainda restasse de seu coração desiludido. Ele talvez lhe permitisse colar os caquinhos restantes, oferecendo-lhe nova forma, permitindo-lhe elegê-lo como um gato singular, digno de admiração, pedestal e respeito. Assim, mais interessado no gozo da contemplação do que na banalidade do toque, ele tratou de abandoná-lo à condição de um objeto de arte.

Cada um ama conforme as razões das próprias afinidades eletivas.

É claro que a personalidade de Sidney preparou o terreno para que sua aparência fosse notada, exigindo-lhe braços cruzados, atenção e fósforo, uma vez que, além de jamais deixar de comparecer ao olho no olho, ele percebia que era percebido, e, quando isto se dava, punha-se em espichos e espreguiçadelas silenciosas, todo lambuzado no mais puro dengo, nojento, de tão charmoso!, armado de atitudes que seduziam qualquer sujeito que estivesse predisposto a ingressar em sua freqüência Fox-trot. Ele deve ter tido aulas com Mata Hari e Bela Otero.

Enfim, uma desgraça nunca vem sozinha.

Mas as coisas, em seu campo afetivo, nem sempre estiveram disponíveis para os gatos. Houve um tempo em que ele os via com reservas, má vontade, simplesmente, na iminência de uma pedrada.

É claro que uma educação dedicada aos cachorros, supervisionada por seu pai, contribuiu sobremaneira para que ele passasse metade da própria vida observando os gatos através das próprias reticências infundadas, sem contar que, talvez, pelo seu inconsciente, ainda perambulasse aquela insistência medieval em associá-los à traição e à feitiçaria.

Mas nem tudo se encontrava inerte em sua consciência predisposta ao Fox-trot. Aos poucos, motivado por pressões alheias a seu engessamento e a seu desejo, ele percebeu que a ignorância só provocava desatinos, e, desde que fosse subsidiada pelo medo do desconhecido, seria sempre a chave para que decifrasse certos enigmas que coagulavam os homens em sujeitos refratários e perversos, sempre deixando-os predispostos a decidirem arbitrariamente o certo e o errado, sem que jamais fossem pensados como generalizações apressadas, perdendo grandes oportunidades para que tropeçassem na felicidade, conquistando o que talvez lhes fosse permitido neste mundo. Portanto, era mais inteligente e racional deixar-se arrebatar pela idéia de que nunca seria tarde para que renovasse seus conceitos, aprendesse coisas novas, arejasse sua mente, varejando de seu íntimo o lixo do preconceito. Gostos e taras estão sempre na iminência de serem substituídos, desde que haja boa vontade por parte do afetado, empenhando-se na composição da própria metamorfose.

Apaixonar-se por Sidney talvez fosse o mesmo que saber da necessidade dos museus e da inconseqüência insaciável dos colecionadores, permitindo-se, sem nenhum escrúpulo, cuspir naqueles que se debatiam pela manutenção da propriedade privada, como fonte energética do próprio egoísmo. Portanto, amá-lo, e isto se deu em pouco tempo de convivência, bastando-lhe que perambulasse pela casa de uma tia, talvez implicasse em jamais prescindir do sacrifício pela conquista da liberdade de seu espírito, pouco lhe importando o preço que ela lhe custasse. Sentia-se tão aristocrático e vagabundo quanto Sidney, pronto para condenar-se à existência.

E não lhe foi difícil franqueá-lo às próprias escolhas, pois percebera que a melhor maneira que tinha para que o atraísse, embora não estivesse interessado em subjugá-lo ao desconforto de uma gaiola, seria sempre ignorá-lo, livrando-o de qualquer compromisso afetivo sufocante, desses que oprimem e espantam qualquer objeto amoroso. E tudo, desde que ele se submetesse às exigências da própria paciência e da compleição anímica do amado, uma vez que observá-lo era quase um exercício de alteridade, poderia redundar numa longa e profunda amizade, quase roçando num two of a kind.

E assim, seguindo o rastro da sinuosidade das próprias emoções, quando menos estivesse no aguardo, sem nenhuma pretensão à atalaia, Sidney se punha à sua disposição, esfregando-se num ir e vir incessante. Aquilo era macio, quase vison ou chinchila, talvez intimando qualquer sensibilidade arguta a entregar-se à sua textura, consumindo-se, sem trégua ou refresco, numa promessa de beleza e de sensualidade. E aí, desde que ele estivesse disposto a aderir a seu apelo, bastaria acompanhá-lo em seu serpenteado jazzístico, muito Cotton Club, fosse com um dos seus braços, fosse com outras partes de seu corpo, sem jamais agarrá-lo, deixando-o sempre livre para que ele o possuísse com suas improvisações sem partitura, até que se sentisse satisfeito, queimando etapa por etapa daquele processo de sedução recíproca. Num outro de repente, ele saltaria em seu colo, entregando-se ao sono e às carícias que ele estivesse interessado em administrar-lhe. E um seria do outro, na iminência do cheek to cheek, embora ninguém fosse de ninguém.

Uma rosa é uma rosa uma rosa uma rosa... Um gato é um gato um gato um gato... Sidney é  Fox-trot. O Papa já foi pop! E todos, filhos de Deus.

Happy feet! I’ve got those happy feet... 

Augusto Mariante 

mariantefurtado@hotmail.com

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