O
episódio desta narrativa remonta à segunda metade do século passado.
Aconteceu no lugar denominado ESTACIÓN DE ACHAR, Departamento de
Tacuarembó, Uruguai.
Era
uma manhã de setembro. Os campos estavam floridos e uma brisa suave
agitava mansamente o capinzal ...
O velho Policárpio Cunha se recuperava de uma gripe que o tinha posto na
cama há vários dias. Sua fazenda compreendia imensa área de terras, de
variada paisagem, em que se descortinavam planícies, colinas, cerros,
florestas, açudes e matagais. Grandes rebanhos bovinos e ovinos povoavam
os campos e pastavam tranqüilos. Os tempos eram prósperos e raramente se
registravam roubos de gado, e quando aconteciam, eram logo atribuídos aos
membros do partido adversário. Na época já existiam os dois partidos
tradicionais do Uruguai, o Blanco e o Colorado. O velho Policárpio era
benquisto na região e mantinha excelente relação com seus vizinhos.
Patrão exemplar, deixava as lides sob o comando do capataz, um bom homem
a quem dera alguns hectares de terra para criar e plantar, afora o soldo e
a comida. Seus empregados, assim como o capataz, eram pessoas de inteira
confiança. O velho não os tratava como empregados, porém como membros
da família, e verdadeiros amigos.
Nesse tempo, na Fazenda do velho Policárpio, todos levavam uma vida
harmoniosa e tranqüila, apesar dos conflitos revolucionários internos do
país. Era a época do “Caudilhismo” que sucedera à guerra do
Paraguai.
Nos
últimos dias, porém, essa tranqüilidade da fazenda fora abalada. Alguma
coisa estranha e atemorizante acontecia por ali. Várias ovelhas haviam
sido encontradas mortas, dilaceradas e semidevoradas.
Inúmeras
buscas foram feitas, inicialmente sem nenhum resultado. Homens armados,
montados e a pé, acompanhados de cães, percorriam durante o dia os
campos e vasculhavam tudo, desde a área das pastagens até os matos e
cerros. E nada.
Mas naquela manhã de setembro surgira uma pista. Os cães haviam farejado
algo e conduziram o grupo armado até uma área abundante em ervas e pastiçal.
Ali encontraram várias covas, situadas próximas uma da outra, e algumas
encobertas pelo capim.
Depois de identificarem todos os buracos, postaram-se com seus cães e
armas a vigiar, e mandaram um emissário avisar o patrão.
O
lugar onde estavam ficava a vários quilômetros do rancho. O peão montou
no seu cavalo e saiu a galope.
Alguns animais que pastavam por ali se assustaram e saíram em disparada,
abrindo caminho ao ginete. Bandos de pássaros levantaram vôo e um lote
de avestruzes correu pesadamente. O Sol estava quase a pino, e, afora
algumas nuvens esparsas, o céu se apresentava límpido e azul. Lá em
cima, alguns corvos planavam suas silhuetas escuras e tênues, a centenas
de metros de altura, espreitando possíveis carniças. Nos banhados e
sangas, variada fauna silvestre, entre capivaras, lebres e ratões do
banhado, aproveitavam a cálida manhã de sol. E o nosso ginete
continuava galopando com a notícia.
Daí a pouco surgiu o rancho, no meio do arvoredo. Imensos carvalhos e umbús
derramavam por ali a sua dadivosa sombra. A chaminé do rancho fumegava,
denunciando o almoço prestes a ser servido. A bicharada caseira se
espalhava pelo terreiro. Viam-se galinhas, perus, patos e alguns porcos
com suas cangalhas à cata de cascas e restos de farelo. Uma grande
carreta, recoberta de couro, descansava apoiada em compridos varões e
meia-dúzia de bois de canga pastavam nas proximidades, além da cerca.
Era uma daquelas manhãs de primavera, como tantas outras em sua aparência.
Mas algo terrível pairava invisivelmente na atmosfera.
O
ginete chegou em disparada e desmontou de um salto:
—
Encontramos a fera! — gritou.
Apesar das dores musculares e do seu estado febril, o velho Policárpio,
que tinha bom ouvido, se ergueu da cama. O homem invadiu a casa de chapéu
na mão. Seu rosto estava suado. Ele repetiu:
—
Encontramos a fera, patrão.
O
velho respondeu com voz tranqüila:
—
Já ouvi, meu filho. Acalme-se. Lave o rosto e beba um gole d’água para
refrescar-se.
Enquanto o empregado colocava a cabeça sob um abundante jato d’água
fresca e a patroa velha lhe alcançava uma tigela, Dom Policárpio se
vestia e calçava as botas de cano largo.
— Fica em casa, Policárpio; não estás bem ... — disse-lhe a mulher
com seu habitual desvelo.
— Estou bem, minha velha. Cuida que permaneçam todos em casa e serve
almoço aos criados e crianças. Nada de alarmes. Vamos capturar essa fera
e logo estaremos aqui para almoçar.
A notícia trazida pelo peão estranhamente refizera o velho; e agora, com
o desembaraço de um guri novo, espingarda na mão, deu um beijo na mulher
e saiu ligeiro na companhia do empregado.
Dois cavalos descansados e já encilhados esperavam por eles. Montaram e
saíram ao galope. O velho Policárpio era um bom cavaleiro, apesar dos
seus quase oitenta anos. Os homens aguardavam em seus postos. Os cães
latiam. Uma pancada de vento varria o pastiçal e agitava a basta
cabeleira branca do velho Policárpio, que já surgia, acompanhado do
mensageiro, por trás de uma colina.
Vinham ao tranco, agora que estavam próximos, para não causarem maior
reboliço. Chegaram. O velho perguntou:
—
Tudo pronto, meus filhos? — repetindo o tratamento familiar que
costumeiramente usava com os empregados.
Os
homens assentiram e o capataz falou:
—
Tudo pronto, patrão. Agora é desentocar o bicho.
O velho, cauteloso, correu os olhos pelo pastiçal e indagou:
—
Revisaram bem? Esses bichos são traiçoeiros.
— Não se preocupe -- disse o capataz. -- São seis covas e tem um homem
à beira de cada uma apontando a arma.
O velho recuou um passo, preparou a arma e deu um disparo para o alto. O
tiro rebombou no ar e a passarada levantou vôo.
Ouviu-se um rugido medonho e uma enorme suçuarana, emergindo dos pastos,
saltou sobre as costas do velho Policárpio. O animal surgira de uma toca
desguarnecida, que ficara escondida sob o pastiçal. Os homens estavam
aparvalhados.
O bicho os lograra. Não se animavam a atirar agora com receio de ferir o
patrão velho, que inutilmente se debatia, sob as garras e dentes do puma
carniceiro.
Ficaram estaqueados, com as armas apontadas. Os cães latiam raivosamente,
mas eram sujeitados por seus donos que os impediam de avançar.
Indiferente aos latidos, a onça parda sacudia fortemente o corpo já
ensangüentado de sua vítima, despedaçando-o com suas mandíbulas. O
velho Policárpio, num fio de voz, conseguiu gritar aos empregados:
—
Atirem, por favor...
Vários tiros foram disparados contra a fera, jogando-a para o alto em
terríveis convulsões . . . e mais uma saraivada de balas acabaram com
ela.
Os homens se aproximaram do que restava do corpo do patrão. Estava
horrivelmente dilacerado.
Enrolaram-no num poncho e rumaram de volta para o rancho. O Sol se
escondera em respeito ao falecido sob um escuro manto de nuvens. Uma
melodia triste pareceu irromper do silêncio agreste. Era a homenagem da
natureza a meu bisavô, um valoroso filho daquelas terras ...
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