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Uma Biografia
Augusto Mariante

“Se não procurares senão a recompensa, o trabalho vai parecer-te penoso: mas, se apreciares o trabalho por si mesmo, nele próprio terás a tua recompensa.

”Tolstói

Sem dúvida, ele sabia disso, e passara a saber da coisa a partir do instante em que ela foi percebida, mas foram necessários muitos anos para que ele chegasse a tal conclusão, pensando que, sem dúvida, havia música entre eles, sim, desde que se conheceram sempre houvera, sim, havia música entre os dois, e, às vezes, ela se convertia em Ravel, não no Bolero, mas num concerto para piano, como se ela fosse a única peça que sobrara duma hecatombe atômica, resistindo na sobrevivência duma barata teimosa, espargindo melancolia, doçura e a metáfora do avestruz.

E pelo que ele se lembrava, eles haviam sido postos lado a lado, numa sala de aula, num março escaldante do ano da graça de 1969, ano em que os americanos foram à lua, e parece que a coisa foi televisada durante o programa do Flávio Cavalcanti[1], num domingo noturno, entregue a um julho glacial - e este tinha sido o momento do primeiro encontro, do início dum reconhecimento recíproco, onde, de certa forma, tudo se concentrava nas possibilidades dum olhar que permitiu o esboço dum sorriso, abrindo as portas para as primeiras palavras. E ele também se recordava do estojo plástico que o outro usava, num cor-de-rosa pálido, e da borracha imensa que vivia lá dentro, tão grande que sugeria alguma obscenidade.

Havia música entre eles, e mal aquela melodia melíflua, sugerindo nenúfares e as possibilidades do lilás, afetara seus tímpanos, ele acabou retornando, deixando-o imerso em lembranças, apesar de não saber muito bem o que poderia fazer com elas. E ele, lembrando por uma determinada melodia alguém que lhe fora muito caro, também pensava que não conseguia entender quem não se deixasse apanhar pelas armadilhas da música, pois ela seria sempre a revelação mais íntegra da necessidade do devaneio e da fuga, com ou sem tempero no cravo à disposição dos sentidos, e pouco lhe interessava que o arrebatamento pudesse vir de Bruno e Marrone[2] ou de Jean-Baptiste Lully[3], pois ele também sabia que gosto não se discute, apenas se lamenta. Sim, havia música entre eles, e Milton Nascimento[4] também comparecia por aqueles tempos, mas ele adejava prometendo política, sob o disfarce da metáfora, porque, nessa época, a MPB[5] não imaginava que Gonzaguinha [6]poderia ter dito après moi le deluge[7].

E ele sentia que lhe era agradável, naquele momento, subjugado por um Ravel que iluminava um comercial francês, porque toda propaganda sincera é sempre ardilosa em sua campanha estelionatária, captá-lo pela transição infância-adolescência, quando ele assustava o próximo como um senhor na meia-idade, aprumando-se na direção dum velho neurastênico, sempre com calças submetidas a um vínculo impecável, apesar delas também sugerirem um pula banhado iminente. E ele, o amigo, nessa fase horrorosa, se dava ao luxo de ouvir Paul Mauriat[8], uma coisa esquisita que, embora francesa, brotara dos pântanos do Kitsch, insurgindo-se como arremedo de bom gosto, absolutamente adequada para salas de dentistas, antecipando o fascínio dum tratamento de canal. E ele também se lembrava que o quem sabe futuro biografado o dominava por inteiro nessa época, porque era como se suas opiniões a respeito de tudo fossem as únicas que devessem ser acatadas, constrangendo-o a desprezar os demais como se fossem insignificâncias a serem toleradas. Subjugado pelo fascínio exercido pelo outro, ele jamais admitia que tudo estaria mais agradável se estivessem ouvindo o It Could be Magic, da Donna Summer, que escapava do quarto do irmão de seu torturador. E música e causerie eram sempre interrompidas no meio da tarde, porque, se nas casas inglesas sempre houve um five o’clock tea, na de seu futuro biografado havia o café das três, com uma mesa bem brasileira, repleta de coisas simples, mas sempre gostosas, principalmente, o pão d’água vindo quentinho da padaria bem próxima. E aquelas tardes no casarão da mãe dele serviram de modelo para que escrevesse um conto que lhe traria um prêmio literário, surrupiando daqueles momentos suas tias solteironas, coisa pouco gentil de quem se intitulava da família – entretanto, a indelicadeza e a indiscrição não chegaram a estremecer suas relações, apesar da mãe do futuro biografado ter ficado possessa, não deixando de ter certos gramas de razão. Acontece que, pela cabeça dele, se não poupava a si mesmo, quando estava escrevendo, achava-se também no direito de não poupar o alheio, desde que encontrasse no observado alguma possibilidade que se transformasse em efeito estético. 

E o autor, talvez futuro biógrafo, recordava também que eram infantis e orgulhosos, tanto que num maio morno de 1970 - ano da Copa no México, mais Jairzinho, Rivelino, Tostão, Carlos Alberto, Pelé & Emílio Garrastazu-Mécidi,[9] com direito a um feriado de três dias -, após um período de certa intimidade, tornaram-se inimigos figadais por uma bobagem que ele não sabia se reavivava ou se varria sob o tapete mais próximo, apesar da sua desavença repentina muito se aproximar duma querela entre duas preciosas ridículas, para que não ele não pensasse em coisa pior. E ele também cogitava a respeito de que jamais deveríamos esquecer de que quem desdenha quer comprar, e que ódio, em muitos casos, não passa de amor mal resolvido. Mas eles reataram quando estavam abandonando a adolescência, fundindo-se numa amizade franca e quase inseparável, só vindo a se afastar pelas circunstâncias da vida de cada um, embora ele nunca o tivesse esquecido, sentindo às vezes sua ausência depois que ele morreu. Sim! Aquela instância provocada por Ravel funcionava como um agente provocador muito peculiar, incitando-o a lembrar-se dele como cicatriz, porque ele emergia com muita ternura através das reminiscências, porque ele era raro, desde que comparado com o que sobrara a sua volta, mais ainda, com o que encontraria pelo caminho, depois que ele morrera, merecendo a vagueza e a ambigüidade duma possível biografia. E após o calvário da adolescência, graças a Deus!, o futuro biografado, nunca mais ouviu Paul Mauriat, aderindo ao jeans e adejando pelo mundo na postura elegante dum jogador de pólo, despindo-se do reprimido neurastênico para que se submetesse aos rigores do cinismo mais sincero.

Aliás, de certa maneira, o futuro biógrafo seria sempre pródigo em só perceber o que tinha, depois que tudo estava perdido, pois ele sempre precisava renovar suas relações, sempre intensas, mas pouco duradouras, porque se entediava com muita facilidade das pessoas a seu redor. Talvez fosse o fluxo incessante da mera dialética das coisas que o fizesse estar sempre subjugado por essa espécie de inquietude, permitindo-lhe pensar que pessoas ocupavam espaço, sendo muito mais interessante guardá-las na memória, deixando que aparecessem e desaparecessem de forma intermitente, sempre que sua imagem fosse provocada por algum jogo associativo que talvez ele próprio tivesse dado causa, porque era qualquer coisa próxima da invocação dum fantasma, e ele, o quem sabe biógrafo, sabia que era de todos e não pertencia a ninguém, exceto a si mesmo, pois o amor universal não lhe permitia exclusividade, mas somente favoritos momentâneos, quem sabe, na função de cargos de confiança.

 E ele pensava que os dois poderiam ter provocado entre si muitas trocas de secreções, pois oportunidade jamais lhes faltara, mas nada sexual ocorreu entre eles, porque seu coito talvez fosse mental, com certa tendência à orientação estética. E o futuro biógrafo remói que a vida se consumia em paradoxo, porque, se tivesse havido atração física entre a dupla, talvez eles tivessem se arranjado muito bem, evitando que incorressem no somatório de besteiras que estava à espera de sua imprudência. Mas ele também sabia que nada era perfeito, estando quase tudo sempre incompleto e sujeito a correções, nem sempre compatíveis com nosso grau de determinação e paciência, e isso lhe permitia cogitar a respeito do contrário, pois talvez após a insatisfação permanente do desejo, o que poderia ter significado uns três meses na consumação do crime, eles poderiam ter sido fulminados por um asco recíproco, destruindo um time que estava ganhando. Amantes, maridos, esposas são como absorventes – amigos, nem sempre! E talvez a vitória estivesse sempre nas mãos indiferentes do Ponto-Contraponto[10], antecipando o Quadrilha de Drummond[11]. O futuro biógrafo tinha certeza de que morreria dizendo que a vida imitava a arte!

Sim! Havia música entre eles, mas também literatura, cinema e filosofia, porque, enquanto estiveram quase juntos, nunca deixou de existir esse tipo de trocas entre ambos, e sua experiência talvez encontrasse definição nas possibilidades duma quase trepada verbal, regada a cigarros, café preto, deboche e sarcasmo destilados contra o próximo que desabasse em suas prevenções contra o

Kitsch. E eles reduziam os criminosos inocentes a cinzas, sem chance para phoenix, embora ele reconhecesse que o potencial do amigo para desancar o próximo fosse superior ao seu, porque havia em sua língua um raciocínio rápido, tendo sempre uma resposta a qualquer possibilidade de afronta - nele, o bèl-sprit [12]encontrava ressonância, e quem não tomasse as devidas precauções, cairia inevitavelmente no ridículo. E ele tinha certeza de que fora essa deficiência que o levara a transformar-se num escritor, pois só tinha presença de espírito diante do mistério branco duma folha de papel, tropeçando em si mesmo sempre que fosse constrangido a enfrentar os desafios da realidade. E ele também afirmava que sua suposta deficiência permitira-lhe perceber que alguns construíam obras de arte, talvez porque viver lhes fosse simplesmente insuportável; enquanto que outros, ao invés de fazê-las, suportavam-nas num arremedo de síntese ambulante – e talvez neles se concentrasse a essência da originalidade e da coragem, pois talvez fosse provável que estivessem imunes à linha de montagem da era da reprodutibilidade técnica das coisas, porque talvez fossem únicos, desaparecendo totalmente após sua morte, e deles só sendo possível encontrar fragmentos variados e contraditórios, caso alguém perdesse suas horas pensando num deles, predispondo-se a resgatá-los em tentativas biográficas. E tudo isso lhe permitia alimentar a certeza de que, fosse por respeito ou fosse por estética, seria um insulto comprometê-lo com uma biografia insípida, que o reduzisse a mais um herói sem carne, uma vez que sua vida merecia a intensidade antropofágica dos Comedores de Batatas transtornando-se na profanação do Rosa e Azul, pois qualquer vínculo com a moderação e a pieguice trataria de afirmá-lo como se jamais tivesse existido, pouco lhe dizendo respeito que seu esforço mental ficasse confinado a uma totalidade inabordável e inapreensível, oscilando entre o verossímil e o absurdo, mas sempre aguçando a imaginação dos que estivessem interessados em lê-lo, porque, antes de escrever para o mundo, estaria sempre escrevendo para si mesmo, e isso talvez o comprometesse com uma vitória amarga.

E assim, aturdido por aquele emaranhado de pensamentos incessantes, havendo sempre encaixe e janela para mais um, como se mergulhasse num site que se arborizasse na direção do infinito, ele também atinava que era imprescindível que estivesse sempre atento aos sinais da própria intuição, porque, em muitas ocasiões, eles seriam o esboço de algo a ser construído, provocando nele uma satisfação muito íntima, mas também impermeável aos que o circundassem, pois ele sabia que era muito difícil compartilhar suas impressões e anseios com quem quer que fosse, restando sempre um painel repleto de pequenas e grandes medalhas, conquistadas através do tempo, nada mais, nada menos, do que uma coleção de cicatrizes oferecidas pela incomunicabilidade. E ele percebia que a intuição a respeito da construção de algo lhe viera mediante um simples jogo associativo, porque ele também tinha certeza de que, desde que estivesse predisposto, um sinal sempre conduziria a outro, formando uma cadeia interessada em recompor situações, pretérito e imaginário, trazendo prazer ou dor, dependendo da espécie de souvenir. E bastou que a melodia, advinda dum comercial de perfume, entrasse em cena, para que sua inclinação ao jogo fosse ativada.

E ele, mais uma vez, reiterou a certeza de que jogos associativos aprisionavam suas vítimas, reduzindo-as à condição de viciados, mas, além de ser um exercício que impedia um cérebro atrofiado, aprimorando a qualidade duma imaginação, embora sempre comprometidos com a ilusão de qualquer estupefaciente, eram menos nocivos do que um reles carteado ou uma roleta – neles inexistiam dívidas que colocassem em risco a vida dum perdedor insolvente, apesar de terem meios eficientes de conduzir seus adeptos à torre de marfim, aproximando-os de Ismália[13], aquela que enlouqueceu pelo interior dum poema, e lá ficou pela eternidade.

 

Referencias: 

[1] Jornalista e apresentador de rádio e televisão. Famoso pelos bordões “Um instante, maestro!” e “Nossos Comerciais, por favor!”, pelo tom de voz agressivo e pelo gestos exagerados, quando tirava e repunha seus óculos em seu programa na TV Tupi carioca. Uma de suas dramatizações mais famosas, além de certas polêmicas que criava, era quebrar, ao vivo, os discos que detestava. Teve seu apogeu durante a transição dos anos 60 para os 70. É um dos marcos da televisão brasileira, embora já esteja esquecido – aliás, a memória não faz parte da cultura do Brasil.

[2] Famosa dupla sertaneja brasileira.

[3] Compositor francês de origem italiana. Lully é a trilha sonora da Versailles dos tempos de Luís XIV.

[4] Compositor e cantor brasileiro.

[5] Abreviatura de Música Popular Brasileira.

[6] Outro compositor e também cantor brasileiro.

[7] Famosa citação de Luís XV. Ela afirma que depois dele a monarquia não irá sobreviver.

[8] Famosa orquestra francesa, durante os 60’s e os 70’s. Estilo sala de espera de consultório de dentista. Além do KITSCH!

[9] Lista parcial dos jogadores que compunham a seleção brasileira  durante a Copa de 1970. Emílio Garrastazu-Médici é o presidente do Brasil na época. O Brasil, em 1970, acabou ganhando a taça. Havia progresso econômico, tortura e patriotismo na marra. Era no estilo Brasil, ame-o ou deixe-o!

[10] Alusão ao romance Point Counter Point – Aldous Huxley, 1928.

[11] Alusão ao poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.

[12] Famosa expressão francesa que significa um indivíduo cultivado, sutil e ferino em suas observações em sociedade, seguindo o estilo perde-se o amigo, mas nunca a piada ou o chiste. Prática indispensável aos salões, durante o Antigo Regime. Fazer alguém desabar no ridículo era uma crueldade repleta de bom tom.

[13] Poema de Alphonsus de Guimaraens, poeta simbolista brasileiro. Ismália enlouquece e se afoga no mar.

Augusto Mariante 

mariantefurtado@hotmail.com 

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