Amigos protectores de Letras-Uruguay

Um enterro
Augusto Mariante

Ele chegara atrasado. Mas seu atraso não o impediu de ouvir o som áspero de um caixão deslizando para o interior de um nicho. Sem que soubesse o motivo, fora sempre esse ruído, desde que começara a freqüentar enterros, o que mais lhe chamava a atenção.  Era como se aquilo simbolizasse o peso e a transitoriedade da matéria em franca expansão, dizendo, a quem tivesse olhos de ver, que, dali em diante, pelo aconchego da umidade e do breu, só haveria vermes e bafio, e que o sujeito supostamente enterrado já deveria estar em outro lugar, conforme seu grau de merecimento. E houve a tampa necessária, seguida de algumas pás de cimento e argamassa, à  espera de uma futura lápide, contendo os dados essenciais de quem por ali apodrecia, havendo também certo meia volta volver de muitos passos dispersos na direção do que ainda lhes restava de vida.

Sem que se deixasse envolver pela dezena de indivíduos que se afastavam, ele acabou ficando por ali, absolutamente comprometido com a própria insignificância, sentindo vento e solitude, muito pouco interessado em conversar com quem quer que fosse.

E ele pensou que estava muito longe o tempo em que um homem, chamado Purcell, colocara seu talento musical a serviço de uma pompa fúnebre, celebrizando mais seu trabalho do que propriamente a importância da defunta. Ele tinha certeza de que a Rainha Mary tinha sido esquecida pelos interiores de livros e por paredes de museus, através dos séculos, bastando ao estudante inglês que a soubesse espremida entre James II e Ana, a gotosa, entretanto, a trilha sonora de seu enterro ainda palpitava pelos ouvidos sensíveis, fazendo parte do patrimônio erudito da condição humana.

Para o bem da própria humanidade, essa espécie de féretro já se encontrava em franca extinção.

Hoje, eles eram simples e apressados, tão consumidos pela pressa que, às vezes, muita gente corria o risco de ser enterrada viva, embora o descuido não saísse pela imprensa, e tudo ficasse por conta do susto de alguns coveiros que, ao exumar algum corpo, sabia-se lá por que motivos, descobriam um defunto revirado, além da parte interna do caixão encontrar-se repleta de arranhões. Sim, hoje os enterros eram simples e apressados, sem trilha sonora, comprometidos mais com fardos sociais do que com rituais de despedida, onde afeto e saudade mediam forças na construção da memória de um morto.

O que seria de Purcell sem essa Senhora...

E ele também foi acometido pela lembrança de uma prima distante, não muito dotada de inteligência, que lhe dissera ao telefone que estava com sua consciência tranqüila porque oferecera à própria mãe um enterro de luxo, com direito a uma eternidade vertical, porque a finada morria de medo de sentir-se sufocada num túmulo sob a terra, pouco lhe dizendo que tivesse a solenidade de um monumento ou a delicadeza de uma plaquinha metálica, rodeada de grama.

Ele não era Manuel Bandeira1. Nunca fora apresentado a um pneumotórax. Não sabia dançar um tango argentino. Só lhe restava fumar um cigarro, sem que deixasse de pensar em Purcell, gastando seu tempo na contemplação curiosa de cada lápide, quase todas estragadas por muitas flores de plástico, sempre no gozo supremo do vento e da solitude. 

Augusto Mariante 

mariantefurtado@hotmail.com

Ir a índice de América

Ir a índice de Mariante, Augusto

Ir a página inicio

Ir a mapa del sitio