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O velho e a fera
Luciano Machado

O episódio desta narrativa remonta à segunda metade do século passado. Aconteceu no lugar denominado ESTACIÓN DE ACHAR, Departamento de Tacuarembó, Uruguai.  

Era uma manhã de setembro. Os campos estavam floridos e uma brisa suave agitava mansamente o capinzal ...

O velho Policárpio Cunha se recuperava de uma gripe que o tinha posto na cama há vários dias. Sua fazenda compreendia imensa área de terras, de variada paisagem, em que se descortinavam planícies, colinas, cerros, florestas, açudes e matagais. Grandes rebanhos bovinos e ovinos povoavam os campos e pastavam tranqüilos. Os tempos eram prósperos e raramente se registravam roubos de gado, e quando aconteciam, eram logo atribuídos aos membros do partido adversário. Na época já existiam os dois partidos tradicionais do Uruguai, o Blanco e o Colorado. O velho Policárpio era benquisto na região e mantinha excelente relação com seus vizinhos. Patrão exemplar, deixava as lides sob o comando do capataz, um bom homem a quem dera alguns hectares de terra para criar e plantar, afora o soldo e a comida. Seus empregados, assim como o capataz, eram pessoas de inteira confiança. O velho não os tratava como empregados, porém como membros da família, e verdadeiros amigos.

Nesse tempo, na Fazenda do velho Policárpio, todos levavam uma vida harmoniosa e tranqüila, apesar dos conflitos revolucionários internos do país. Era a época do “Caudilhismo” que sucedera à guerra do Paraguai.   

Nos últimos dias, porém, essa tranqüilidade da fazenda fora abalada. Alguma coisa estranha e atemorizante acontecia por ali. Várias ovelhas haviam sido encontradas mortas, dilaceradas e semidevoradas.

Inúmeras buscas foram feitas, inicialmente sem nenhum resultado. Homens armados, montados e a pé, acompanhados de cães, percorriam durante o dia os campos e vasculhavam tudo, desde a área das pastagens até os matos e cerros. E nada.

Mas naquela manhã de setembro surgira uma pista. Os cães haviam farejado algo e conduziram o grupo armado até uma área abundante em ervas e pastiçal. Ali encontraram várias covas, situadas próximas uma da outra, e algumas encobertas pelo capim.

Depois de identificarem todos os buracos, postaram-se com seus cães e armas a vigiar, e mandaram um emissário avisar o patrão.

O lugar onde estavam ficava a vários quilômetros do rancho. O peão montou no seu cavalo e saiu a galope.

Alguns animais que pastavam por ali se assustaram e saíram em disparada, abrindo caminho ao ginete. Bandos de pássaros levantaram vôo e um lote de avestruzes correu pesadamente. O Sol estava quase a pino, e, afora algumas nuvens esparsas, o céu se apresentava límpido e azul. Lá em cima, alguns corvos planavam suas silhuetas escuras e tênues, a centenas de metros de altura, espreitando possíveis carniças. Nos banhados e sangas, variada fauna silvestre, entre capivaras, lebres e ratões do banha­do, aproveitavam a cálida manhã de sol. E o nosso ginete continuava galopando com a notícia.

Daí a pouco surgiu o rancho, no meio do arvoredo. Imensos carvalhos e umbús derramavam por ali a sua dadivosa sombra. A chaminé do rancho fumegava, denunciando o almoço prestes a ser servido. A bicharada caseira se espalhava pelo terreiro. Viam-se galinhas, perus, patos e alguns porcos com suas cangalhas à cata de cascas e restos de farelo. Uma grande carreta, recoberta de couro, descansava apoiada em compridos varões e meia-dúzia de bois de canga pastavam nas proximidades, além da cerca. Era uma daquelas manhãs de primavera, como tantas outras em sua aparência. Mas algo terrível pairava invisivelmente na atmosfera.

O ginete chegou em disparada e desmontou de um salto:

— Encontramos a fera! — gritou.

Apesar das dores musculares e do seu estado febril, o velho Policárpio, que tinha bom ouvido, se ergueu da cama. O homem invadiu a casa de chapéu na mão. Seu rosto estava suado. Ele repetiu:

— Encontramos a fera, patrão.

O velho respondeu com voz tranqüila:

— Já ouvi, meu filho. Acalme-se. Lave o rosto e beba um gole d’água para refrescar-se.

Enquanto o empregado colocava a cabeça sob um abundante jato d’água fresca e a patroa velha lhe alcançava uma tigela, Dom Policárpio se vestia e calçava as botas de cano largo.

— Fica em casa, Policárpio; não estás bem ... — disse-lhe a mulher com seu habitual desvelo.

— Estou bem, minha velha. Cuida que permaneçam todos em casa e serve almoço aos criados e crianças. Nada de alarmes. Vamos capturar essa fera e logo estaremos aqui para almoçar.

A notícia trazida pelo peão estranhamente refizera o velho; e agora, com o desembaraço de um guri novo, espingarda na mão, deu um beijo na mulher e saiu ligeiro na companhia do empregado.

Dois cavalos descansados e já encilhados esperavam por eles. Montaram e saíram ao galope. O velho Policárpio era um bom cavaleiro, apesar dos seus quase oitenta anos. Os homens aguardavam em seus postos. Os cães latiam. Uma pancada de vento varria o pastiçal e agitava a basta cabeleira branca do velho Policárpio, que já surgia, acompanhado do mensageiro, por trás de uma colina.

Vinham ao tranco, agora que estavam próximos, para não causarem maior reboliço. Chegaram. O velho perguntou:

— Tudo pronto, meus filhos? — repetindo o trata­mento familiar que costumeiramente usava com os empregados.

Os homens assentiram e o capataz falou:

— Tudo pronto, patrão. Agora é desentocar o bicho.

O velho, cauteloso, correu os olhos pelo pastiçal e indagou:

— Revisaram bem? Esses bichos são traiçoeiros.

— Não se preocupe -- disse o capataz. -- São seis covas e tem um homem à beira de cada uma apontando a arma.

O velho recuou um passo, preparou a arma e deu um dispa­ro para o alto. O tiro rebombou no ar e a passarada levantou vôo.

Ouviu-se um rugido medonho e uma enorme suçuarana, emergindo dos pastos, saltou sobre as costas do velho Policárpio. O animal surgira de uma toca desguarnecida, que ficara escondida sob o pastiçal. Os homens estavam aparvalhados.

O bicho os lograra. Não se animavam a atirar agora com receio de ferir o patrão velho, que inutilmente se debatia, sob as garras e dentes do puma carniceiro.

Ficaram estaqueados, com as armas apontadas. Os cães latiam raivosamente, mas eram sujeitados por seus donos que os impediam de avançar. Indiferente aos latidos, a onça parda sacudia fortemente o corpo já ensangüentado de sua vítima, des­pedaçando-o com suas mandíbulas. O velho Policárpio, num fio de voz, conseguiu gritar aos empregados:

— Atirem, por favor...

Vários tiros foram disparados contra a fera, jogando-a para o alto em terríveis convulsões . . . e mais uma saraivada de balas acabaram com ela.

Os homens se aproximaram do que restava do corpo do patrão. Estava horrivelmente dilacerado.

Enrolaram-no num poncho e rumaram de volta para o rancho. O Sol se escondera em respeito ao falecido sob um escuro manto de nuvens. Uma melodia triste pareceu irromper do silêncio agreste. Era a homenagem da natureza a meu bisavô, um valoroso filho daquelas terras ...  

Luciano Machado (escritor, filho de pai brasileiro e mãe uruguaia, natural de Santana do Livramento-RS-Brasil, na fronteira com a cidade de Rivera, Uruguai).

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